Diversidade

Ainda estamos nos tempos do imperador: sobre o racismo contra os atores e atrizes da novela

Quanto mais o racismo precisa bater e minar nossas forças para que pessoas negras deixem de apanhar dentro dessas empresas?

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Há meses, tomei conhecimento de uma situação devastadora que teria acontecido nos bastidores da novela “Nos Tempos do Imperador” da Rede Globo. Mas, hoje, que alguns jornais tiveram acesso ao texto do processo e fizeram circular a denúncia, me parece urgente gritar não só em apoio ao trio de atrizes mas contra essa estrutura racista que se escamoteia sob o véu da impunidade.

O elenco negro da trama, que se propunha a retratar uma história por uma perspectiva supostamente antirracista, denunciou que estava sendo segregado dentro das locações – com camarins piores, salários menores e tratamento diferenciado. Três atrizes negras – Cinara Leal, Dani Ornellas e Roberta Rodrigues, com coragem – teriam assumido a liderança para levar aquela situação para a direção da novela. A resposta diante da denúncia teria sido a pior e mais racista possível: “Não tem nada disso. Vocês deveriam agradecer por estar aqui”. E essa resposta não só teria sido dada apenas pelo diretor como também corroborada por outras pessoas da equipe/elenco, que inclusive chamaram as reivindicações de “mimimi”.

Sim, parece drama de novela mexicana mas não é. O Brasil não é para amadores. É a vida real, a vida das pessoas pretas num país, cuja novela que se propõe a falar sobre racismo, testa o racismo, nos bastidores, em sua própria equipe.

Só pra vocês terem noção, entre idas e vindas da pandemia, a novela levou cerca de 19 meses para ser gravada. E eu te pergunto: há quantos meses – MESES – essa denúncia foi feita diretamente para os responsáveis pela equipe? Quantos meses depois essa “história” vazou? Quanto tempo levou para que isso fosse abarcado pelo Compliance da emissora? Qual o impacto emocional e profissional na carreira das pessoas que decidiram fazer essas denúncias? Por que esse diretor continuou trabalhando e arranjou um novo projeto e, só agora, ele – que já havia sido denunciado – foi afastado?

O racismo no Brasil funciona assim. Enquanto a atriz branca, protagonista da novela segue sua vida feliz, e registra a emoção de mais uma trama finalizada em rede nacional, a atriz negra que conseguiu se destacar mesmo numa novela ruim, tem sua personagem desumanizada e eliminada da novela após denunciar o racismo sofrido nos bastidores. Assim como a atriz branca, ela também usa suas redes sociais para falar de emoção MAS porque é o único canal que tem para desabafar e se reerguer diante de tamanha violência sofrida no exercício de sua profissão durante meses.

E o personagem de Selton Mello, ao final da trama, pergunta. “Alguma pergunta?”. Sim. Várias. Mas principalmente: e os casos de racismo nos bastidores da novela? Queremos resposta.

De acordo com as notícias, as atrizes Leticia Sabatella e Gabriela Medevedovski teriam defendido o trio de as atrizes no set. Mas por que, até agora, o restante do elenco branco não se pronunciou publicamente diante da barbárie? Porque o racismo é uma barbárie. Comentário de apoio indireto em rede social não é apoio.

Queremos o apoio do elenco branco que se diz aliado, mas sobretudo queremos respostas mais ágeis da instituição. A estrutura que tudo ouve e tudo vê, tudo sabe, inclusive desse tipo de episódio.

A Globo tinha trancado a situação no Compliance. Enquanto isso, uma mulher, negra, talentosa, com uma carreira sólida, que construiu uma personagem inesquecível – apesar de estar em uma trama horrorosa – foi escanteada e não gravou o desfecho de sua personagem porque denunciou o racismo que toda a sua equipe estava sofrendo nos bastidores da novela. Devo repetir? Mulher! Negra! Denunciou! Racismo! Foi  ESCANTEADA! EXCLUÍDA! PODADA! SILENCIADA! Automaticamente.

A novela acabou e quem viu o final de Lupita, personagem da atriz Roberta Rodrigues?

As pessoas se defendem como podem. Se vocês rolarem o perfil da amada Roberta Rodrigues no Instagram, verão que, em inúmeras vezes, ela não só teve que se defender de boatos que estavam rolando com seu nome, como tentou denunciar e desabafar sobre essa situação, mesmo que veladamente. Cinara e Dani também desabafaram como puderam e apoiaram a colega.

Na página de Roberta, a atriz afirmou: “tentaram me fazer desistir nesses últimos meses, mais eu fui criada na favela do VIDIGAL, formada pelo NÓS do MORRO, filha do Adilson rodrigues (mecânico), filha da Eliane de Jesus rodrigues silva (costureira), irmã do Brunce Rodrigues, neta da Carmelita de Jesus e componente de uma família PRETA muito fodarastica. Família essa que me fez ter autoestima, ser de verdade, ser forte e jamais desistir”, disse ela que agora se denomina fênix.

E não é?

Mas o silenciamento também é isso. É você lidar com racismo explícito de forma velada. É ter que ser tão estratégico para combater a violência, que não pode falar diretamente dela, até que alguém acate sua denúncia, até que alguém investigue o racista. Caso contrário, ainda periga o racista vir com um processo em cima de você.

Todes nós já sabemos quais são as raízes da segregação, da discriminação e dos silenciamentos nos bastidores da novela, como foram criados os personagens e a narrativa pífia mais uma vez de uma trama com personagens negras e negros, do racismo explicito nas linhas dessa trama a frente e atrás das câmeras. Estamos vendo o que tantas atrizes e atores negros – uns com mais ou menos consciência racial que Roberta Rodrigues – passaram. Acompanhamos também que todo o elenco branco da novela que se serviu de seus privilégios ao longo das gravações, embora possam ter dado o apoio que deram pessoalmente ao elenco preto, não deu a cara a tapa para denunciar aquilo que estavam vendo e interpretando. As atrizes foram silenciadas por corajosamente e dolorosamente denunciar. E, por fim, tomamos conhecimento de que demorou, mas o diretor foi afastado para as investigações.

Mas até quando? Até quando ele permanece afastado? Até quando essa inércia? Até quando essas equipes estruturalmente brancas e racistas? E agora? E as próximas novelas, e as próximas histórias? E se não tomarmos conhecimento das outras violências  para fazer pressão e denunciar aqui de fora?

A Rede Globo, não é a primeira nem a única empresa sentada numa poça de racismo na praça. Trabalho com isso. Circulo por muitos lugares e sei como essa estrutura funciona. É meu trabalho denunciar e fazer com que esses ambientes parem de violentar os nossos e nossas.

Mas eu me pergunto. E quando Cinara, Roberta, Dani e eu não estamos lá? Quanto precisamos apanhar para decidir não apanhar mais, erguer a nossa voz? O quanto sofremos emocionalmente, mentalmente e profissionalmente com isso? Enquanto pessoas brancas que nos açoitaram e açoitam continuam suas jornadas de assédio e achincalhamento impunes, conseguindo mais e mais trabalhos?

Foi por muita pressão, menos do público em geral e mais pela atuação incansável de três mulheres negras, que vimos essa situação tomar a proporção que tomou. Haja ancestralidade e rede de apoio para nos segurar e reerguer! Haja Roberta, Cinara e Dani para nos inspirar e não deixar desistir!

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