Justiça

AI-5 de Paulo Guedes mostra a natureza antidemocrática do capitalismo

Ao sugerir AI-5, ministro da economia dá uma aula sobre liberalismo posto à prática

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No livro “Reforma ou Revolução?”, Rosa Luxemburgo tenta explicar a Eduard Bernstein, destacado teórico da social-democracia alemã, que não é possível chegar ao socialismo através de reformas graduais.

Bernstein acreditava que, diante da fabulosa capacidade de adaptação do capitalismo às suas crises cíclicas, a revolução estaria fadada ao fracasso, de modo que seria viável chegar ao socialismo apenas por meio de iniciativas como o aumento do poder sindical e a ampliação da democracia parlamentar. Rosa, por outro lado, demonstra que as contradições internas do capitalismo, frutos de sua anarquia produtiva, descambam na necessidade histórica de sua superação, impossível, entretanto, de vir na esteira das reformas graduais desejadas por Bernstein.

Em síntese, o que Rosa deixa claro é que não importa a quantidade de litros de perfume que se derrame sobre um amontoado de fezes, pois sua natureza permanecerá a mesma.

“Mas se admitirmos como Bernstein que o desenvolvimento capitalista não conduz à sua própria ruína, então o socialismo deixa de ser objetivamente necessário”, conclui sobre os devaneios reformistas do dirigente social-democrata.

O fato é que as contradições do modo de produção capitalista ajudam a explicar como as liberdades das quais se diz fiador são implodidas pela lógica de suas próprias relações produtivas. Se a probabilidade de transformações sociais aumenta em momentos de crise aguda ocasionados por essas contradições, é das entranhas da economia de mercado que poderá surgir uma nova sociabilidade na qual a riqueza coletivamente gerada sirva à maioria das pessoas ao invés dos vinte e seis afortunados que, sozinhos, concentram hoje metade da riqueza do planeta.

É por coisas como essa que, tanto hoje como nos séculos XIX e XX em que viveu Rosa, o socialismo continua a ser uma palavra de ordem. Como aposta e alternativa.

Uma das contradições apontadas por ela diz respeito às meninas dos olhos das democracias liberais: as liberdades de expressão, associação e de ir e vir, portadoras do mais significativo emblema ideológico do iluminismo por representarem melhor que qualquer outro direito o freio histórico à concepção absolutista de Estado. 

A tradição liberal até questiona liberdades que são categorizadas como sociais – direito à moradia, à seguridade social, à saúde, à educação, etc -, mas não costuma voltar suas armas teóricas contra o miolo das liberdades individuais clássicas – ao menos até que os idealismos burgueses pisem no chão e passem a representar um risco ao principal objetivo (não-declarado) das democracias liberais: garantir a livre circulação de mercadorias e a apropriação privada dos excedentes da riqueza socialmente produzida. 

É esta a esquina na qual a democracia vira uma mera filigrana dentro do contexto maior, para usar as palavras do Sr. Deltan Dallagnol, apóstolo do evangelho lavajatista. Sendo questão de pouca importância, os artifícios para seu rompimento nunca foram tão arrojados. Nem precisam.

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro

Paulo Guedes, ministro da economia, acaba de reanimar o espantalho bolsonarista de que protestos nas ruas contra o governo tornam razoável a instauração de um novo AI-5. Ao vinculá-los à esquerda, tira do baú as fórmulas batidas do Plano Cohen, que serviu de justificativa ao Estado Novo de Vargas, e da “ameaça comunista” que insuflou o golpe contra João Goulart. Pinochet estaria orgulhoso se soubesse que seu ex-funcionário aplaude a excludente de ilicitude que permite meter bala em quem ousar se organizar coletivamente para demonstrar alguma insatisfação com sua política econômica.

Mas o que o ministro quer mesmo é evitar constrangimentos para os abutres que rondam o Estado brasileiro à espera do sinal verde para avançar no patrimônio e na soberania nacional.

Ele sabe muito bem que não dá para fazer isso sem doses de repressão, uma carta importante, sacada sempre que não é possível convencer as pessoas de que viver na miséria, taxar desempregados e trabalhar até morrer são coisas boas. Os saqueadores do rentismo não aderiram ao bolsonarismo de graça. A reforma da previdência é apenas a primeira parcela do butim.

Em julho deste ano, Candido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, disse não se incomodar com Bolsonaro se as reformas continuarem andando. Só no terceiro trimestre de 2019, seu banco lucrou mais de sete bilhões de reais, um aumento de 11% em relação ao mesmo período de 2018. É improvável que esteja disposto a abrir mão de enricar às custas da democracia. Ludwig von Mises, obscuro teórico austríaco que caiu nas graças dos liberteens de internet, estaria do seu lado.

Mises afirma na segunda de suas seis lições que “liberdade econômica significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade”. Logo depois, escreve que todos têm o direito a escolher suas carreiras e fazer o que quer, pois “por intermédio da liberdade econômica, o homem é libertado das condições naturais”. 

A metade da população brasileira que ganha R$ 413,00 por mês certamente discorda. Assim como as mais de treze milhões de pessoas que vivem com até R$ 145,00 mensais, renda que vêm caindo enquanto, só em 2019, o Brasil ganhou 42 mil novos milionários. Mas se a maioria silenciosa resolver fazer barulho e discordar de Mises nas ruas, reclamando que não são tão livres assim e que a vida no Uber e na informalidade não está tão boa quanto dizem, Guedes e Eduardo Bolsonaro já deram o tom da reação.

A tática de prender e arrebentar parece ter o aval dos herdeiros de Smith e Ricardo. Certo economista que se denomina como um “liberal sem medo de polêmicas” firmou posição junto ao bolsonarismo, escrevendo em sua coluna que “se não houver baderna generalizada promovida pela esquerda lulista, não haverá motivo para preocupação, e o governo pode tocar sua pauta de reformas. É tudo que Guedes deseja”.

O sujeito, claro, é um entusiasta das hormonais ideias de Mises. Não abre mão, portanto, da boa tradição liberal de resolver questões sociais na porrada.

Entre 2013 e 2016 multidões também foram às ruas. Mas não foram consideradas baderneiras, e sim encabeçadas por cidadãos e cidadãs que, no legítimo exercício das liberdades democráticas, dividiam o nobre objetivo de dar um jeito no país. Pedir a volta da ditadura militar e ofender Dilma Rousseff com misoginias das mais baixas estavam no guarda-chuva da liberdade de expressão e de reunião, principal arma das quais dispunha o gigante que acabara de acordar.

Hoje não há mais “civismo democrático” e “voz das ruas”, e eventuais multidões em movimento já foram previamente rotuladas de disseminadoras da “baderna generalizada”, para o qual o remédio, segundo Guedes e o filho 03, é o mesmo tomado pelo general Costa e Silva no fatídico 13 de dezembro de 1968.

Voltando ao debate com Bernstein, Rosa explica que, se para a burguesia a democracia tornou-se supérflua ou mesmo incômoda, ela continua sendo indispensável para a classe trabalhadora, uma vez que somente por meio de um regime democrático é possível que se chegue à consciência de seus interesses de classe e de suas tarefas históricas. Prepostos do capital como Paulo Guedes têm razão em temer a democracia. Nós que não podemos ter medo de defendê-la.

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