


Opinião
Agrotóxicos: enquanto o mundo condena o glifosato, o Brasil o inocenta
Fabricantes, autoridades e técnicos procuram esquivar-se da responsabilidade, mesmo que haja conhecimento dos danos e dos riscos


O dia 3 de dezembro de 2034 marcará o aniversário de 50 anos da maior mortandade, concentrada, conhecida e registrada, da indústria química. Na Tragédia de Bhopal, em 1984, a explosão da fábrica indiana de agrotóxicos além de matar milhares de pessoas formou um exército de sequelados. Contabilizam-se 25 mil casos de cegueira num universo de cerca de 50 mil incapacitados para o trabalho.
Meio século foi o tempo necessário para o banimento do inseticida DDT do território brasileiro, em 2009, em razão de severos danos tais como alterações hormonais, malformações de fetos, depressão do sistema imunológico, infertilidade e câncer. Noutros países, como a Suécia e os Estados Unidos, o uso do DDT já estava proibido desde o início da década de 1970.
É inconteste que o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos, com destaque para o glifosato, o veneno mais vendido no mundo. Por aqui, as vendas explodiram depois do desenvolvimento dos transgênicos – soja, milho e algodão.
Na perspectiva da saúde humana, proliferam estudos independentes que correlacionam a exposição ao glifosato a doenças crônicas ou malformações em crianças, além de outras enfermidades que estão sendo pesquisadas, como o autismo, a depressão e o mal de Parkinson. Desde 2015, a divulgação de estudo da Agência Internacional para Pesquisa do Câncer (IARC/OMS), que descreveu o glifosato como “provável causador” do câncer, pôs as autoridades do mundo em alerta.
Em 2018 e 2019 intensificaram-se as notícias de condenações do fabricante de veneno na justiça americana, que reconheceu o nexo entre o câncer e a exposição prolongada ao glifosato. Já estariam tramitando na Justiça mais de 40.000 casos.
Na União Europeia, além da Áustria que baniu o produto, há indicativos de proibição gradual na Alemanha e na França, que já conta com legislações municipais restritivas.
O Brasil avança na contramão. Ignorando os preocupantes sinais, numa decisão bastante criticada, no início de 2019 a Anvisa reavaliou o glifosato concluindo que o veneno não seria classificado como mutagênico, carcinogênico, tóxico para a reprodução e teratogênico, embora tenha tomado o cuidado de assinalar o maior risco para os trabalhadores rurais e para as comunidades expostas.
Por cautela, tentando preservar os próprios avaliadores das responsabilidades futuras, a Anvisa sugeriu a necessidade de capacitação dos trabalhadores, para a mitigação dos riscos. A medida é improvável, como confessado no mesmo relatório ao reconhecer que mais de 60% dos trabalhadores que manuseiam o veneno não completaram o ensino fundamental.
A ressalva da Anvisa é tão inócua quanto à observação dos fabricantes de que produtos à base de glifosato seriam seguros “quando usados conforme as instruções”.
O caso do glifosato é emblemático da sobrevida em território brasileiro de formulações questionadas ou banidas em outros países. Fabricantes, autoridades e técnicos procuram esquivar-se da responsabilidade pelo envenenamento intencional, mesmo que haja conhecimento dos danos e dos riscos.
A contaminação, intencional, apresenta possibilidades de punição pelo ordenamento jurídico brasileiro, como crime de perigo, na espécie de periclitação da vida e da saúde. Mas a questão também pode ser visualizada numa instância mais provável, efetiva e temida, talvez em 2034.
O Brasil ratificou em 2002 o Tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional – TPI aliando-se à cooperação internacional para punir os crimes com repercussão internacional, quando os Direitos Humanos são violados. Dentre os atos desumanos – Crimes contra a Humanidade – que causam intencionalmente grande sofrimento estão o homicídio e as lesões graves ao corpo ou à saúde física ou mental.
O alarmante crescimento nos registros da Síndrome do Espectro Autista, em especial nas regiões de pulverização de veneno agrícola, bem como o aparecimento de doenças graves e incapacitantes, inclusive em crianças, tem aptidão para afetar negativamente o próprio desenvolvimento da humanidade. Entre essas doenças, destaca-se o câncer, apontado pela OMS como a segunda principal causa de morte no mundo.
Com a consolidação dos estudos científicos confirmando a correlação entre a exposição aos agrotóxicos e os agravos crônicos, a questão muda de patamar, tornando-se mais grave. Pois estará em jogo conduta humana consciente que, por motivos econômicos, ignora o princípio da precaução e deflagra ataque contra a saúde e a vida de seres humanos, com pleno conhecimentos dos riscos, mediante atos de autorização e a prática do envenenamento intencional – delitos típicos de lesa-humanidade em tempo de paz.
Cuida-se de comportamento que provavelmente não será poupado pela História nem pela jurisdição penal internacional. Analisando em perspectiva, nossos descendentes não compreenderão como pudemos, como sociedade, tolerar a estratégia do duplo padrão social e sanitário em que multinacionais, conscientemente, fogem do rigor regulatório e da punição das sociedades ricas e esclarecidas, sendo acolhidas e estimuladas por autoridades locais, dóceis aos argumentos meramente econômicos e indiferentes aos danos.
Essa lógica explica a recente decisão brasileira que reduziu a classificação de risco do glifosato, que foi retirado da categoria dos que causam a morte ao ser ingeridos ou ao entrar em contato com olhos e pele, e permanece apenas o símbolo de atenção, ignorando a correlação com as doenças crônicas, que levam ao sofrimento e à morte.
Tal como na Índia, onde ainda há relatos de sobreviventes com doenças crônicas e de uma segunda geração de crianças afetadas pela Tragédia de Bhopal, a estrutura de repressão aos crimes dessa natureza ainda é tímida no Brasil. Mas é importante lembrar que há uma normativa e um Tribunal Internacional que, em algum momento deverá ser acionado, talvez antes de 2034.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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