Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Agora, são outros quinhentos

Tinha quatro gaiolas de passarinhos, cuidava oferecendo mistura fina, água fresca, ovo cozido, jiló, alface. Todos presos e, na minha cabeça, não carregava o peso da consciência. Agora, são outros quinhentos

Imagem: iStock
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Tinha quatro gaiolas de passarinhos. Numa, um pintagol com a asa quebrada, noutra, um casal de periquitos holandeses, na terceira, um canarinho da terra e na última, um coleiro. Cuidava deles oferecendo mistura fina, água fresca, ovo cozido, jiló, alface. Todos presos e, na minha cabeça, não carregava o peso da consciência. Agora, são outros quinhentos.

Não gostava de ir para escola, tinha medo de arguição oral, de ser chamado na lousa para resolver um teorema, uma equação do segundo grau. Tinha pavor de prova surpresa. Agora, são outros quinhentos.

Me acabava no carnaval ao som da mulata assanhada, da nega do cabelo duro, escurinha e olha a cabeleira do Zezé, será que ele em será que ele é? Agora são outros quinhentos.

Comia um copo inteiro de açúcar com aveia vendo Rin-Tin-Tin na televisão. Adoçava o Toddy, a salada de fruta, o mamão. Agora, são outros quinhentos.

Ia para beira da estrada e fazia sinal para os caminhoneiros que paravam e me levavam até a Bahia de Jorge Amado, onde me esticava na praia de Amaralina, ouvindo ela cantar para mim tu me acostumbraste, a todas esas cosas, por eso me pregunto al ver que me olvidaste, porque no me enseñaste como se vive sin ti. Agora, são outros quinhentos.

Todo domingo, ia até a Padaria Savassi com o meu pai, onde ele tomava um Mate-Couro estupidamente gelado, enquanto eu comia um pão doce e bebia um guaraná Gato Preto. Agora, são outros quinhentos.

Toda noite, antes de dormir, lia os fascículos de Conhecer, um por um, até pegar no sono. Li os quinze volumes encadernados, aprendi como viviam os dinossauros, os gregos, os troianos e os índios do Xingu. Agora, são outros quinhentos.

Ouvia as histórias que minha mãe contava, seus temores, seus sonhos com pessoas mortas, suas premonições. Agora, são outros quinhentos.

Andava de bicicleta Monark pneu balão no bairro do Carmo, subia a BR-3, descia a Grão Mogol, pegava a Passa Tempo, depois ia até o Colégio Sion ver as meninas, sem ser assaltado. Agora, são outros quinhentos.

Comprava milho pros pombos e canjiquinha para os pintinhos de um dia no armazém do Seu Mario. Aproveitava e roubava umas balas de café, sem marca, embrulhadas em papel celofane. Agora, são outros quinhentos.

Andava descalço, guerreava com mamona, jogava finca nos terrenos baldios, pegava no gol, subia no muro, roubava banana do Doutor Asplênio. Agora, são outros quinhentos.

Ia ao Independência ver o América de Amaury Horta, Dirceu Alves, Dario Alegria e Jair Bala jogar com o Democrata, com o Siderúrgica, o Galo e a Raposa. Agora, são outros quinhentos.

Soltava pipa, apertava a campainha dos vizinhos e saia correndo, decorava a tabuada, as capitais do mundo, os afluentes do rio Amazonas e tentava entender a trigonometria. Agora, são outros quinhentos.

Antes do golpe militar, colava cartazes de JK 65 nos muros do meu bairro, colecionava selos, chaveiros, carrinhos Mathbox e, todo início de mês, esperava o carteiro trazer o meu exemplar da Fairplay embrulhado num plástico cor de rosa. Agora, são outros quinhentos.

Lia Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, Eram os Deuses Astronautas, de Erich von Däniken, Teorema, de Pier Paolo Pasolini, e Vôo Noturno, de Antoine de Saint-Exupéry, quando voo ainda tinha acento. Agora, são outros quinhentos.

Curtia os Yarbirds, Jeff Beck, Jacksons 5, Fats Domino, Jerry Lee Lewis, Chuck Berry, Carl Perkins, The Platters e Bill Haley e seus Cometas, cantando Rock Around the Clock. Agora, são outros quinhentos.

[Esta é a crônica de número 500, aqui no site de CartaCapital]

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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