

Opinião
Afronta à dignidade
O projeto paulista que veda o acesso de “invasores” a programas sociais é inconstitucional


Está em discussão na Assembleia Legislativa de São Paulo um Projeto de Lei que visa, em nome da suposta defesa da propriedade e da ordem jurídica, proibir que os chamados “ocupantes ilegais e invasores de propriedades de terceiros”, sejam elas rurais ou urbanas, públicas ou privadas, recebam benefícios de programas sociais do governo estadual. As sanções previstas também visam impedir a participação em concursos, a posse em cargos públicos e a contratação com o Poder Público estadual.
Ocorre que o referido Projeto de Lei estadual, que possui similar proposição legislativa em âmbito federal, é flagrantemente inconstitucional. A primeira questão que se coloca é o tolhimento, de forma indefinida e indiscriminada, dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade social, ao passo que a Constituição veda punições perpétuas e impõe obediência à dosimetria no estabelecimento de sanções administrativas.
Não se pode admitir tamanha disparidade entre uma conduta indesejável – qual seja, ocupar uma propriedade alheia, o que já é passível de enquadramento pelo sistema punitivo criminal – com a reação sancionatória proposta pela inovação legislativa, consistente em impedir, de forma perpétua, o acesso aos programas sociais.
Com efeito, a proposição legislativa sobrepõe o direito à propriedade aos demais direitos das pessoas em situação de hipossuficiência. Entretanto, o direito à propriedade, assim como qualquer outro, não é absoluto. Além disso, ele também não pode se sobrepor a outros direitos. Não se pode, portanto, tolher o acesso aos programas públicos destinados aos hipossuficientes em nome da prevalência do direito à propriedade.
A inversão de valores levada a efeito pela proposição legislativa representa, ainda, uma flagrante afronta à dignidade das pessoas. Em vez de serem tratadas como sujeitos de direitos em situação de vulnerabilidade social, a demandar especial proteção do Estado, elas são estigmatizadas e conduzidas à ampliação da situação de vulnerabilidade.
É por todas essas razões que a proposição legislativa é inconstitucional. Ela viola os fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito previstos no artigo 1º da Constituição da República e, ainda, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no seu artigo 3º, os quais impõem a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e, por fim, a promoção do bem de todos.
Outro aspecto que, nesse tema, não pode ser desconsiderado é que a proposição legislativa possui uma nítida pretensão inibitória dos movimentos sociais que atuam em reivindicações relativas ao direito à propriedade, bem como à moradia e às condições dignas de existência. Isto é, a proposição legislativa visa fulminar, inconstitucionalmente, a legítima atuação dos movimentos sociais, o que também não se pode admitir.
Os movimentos sociais são organizações heterogêneas constituídas como legítima contraposição às estruturas tradicionais de poder. Essas formas difusas e contramajoritárias de ação são instrumentos fundamentais de efetividade dos direitos previstos na Constituição.
Consoante destaca José Eduardo Faria na obra Justiça e Conflito, a origem dos movimentos sociais está relacionada ao modelo de desenvolvimento econômico adotado no começo da segunda metade do século XX, o que acarretou a “erosão dos laços de enraizamento social”. Mais especificamente, a industrialização provocou, conforme palavras do mesmo autor, uma “crise estrutural das instituições governamentais” e uma diferenciação socioeconômica complexa e contraditória marcada pela emergência de “associações populares não políticas” e de “organizações coletivas” preocupadas com a reformulação dos “códigos simbólico-culturais”.
Nesse cenário, é inerente à atuação dos movimentos sociais a chamada “política de protesto”, bem como a adoção de mecanismos de atuação e de posicionamento fundamentados no direito de resistência, isso tudo em nome da própria efetividade do nosso Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais.
Também por essas razões não podemos admitir que a proposição legislativa em exame seja aprovada. Do contrário, caberá, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a contraposição da vontade legislada ocasional com o pacto intergeracional consubstanciado na nossa Constituição. •
Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Afronta à dignidade’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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