José Guilherme Pereira Leite

Escritor, crítico, ensaísta e professor universitário. É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo.

Opinião

‘Adolescência’ faz sucesso, mas não atinge seus supostos propósitos

O enorme desserviço da série é insinuar que a ‘economia da atenção’ seja só uma embalagem high‑tech para problemas de sempre. Não é.

‘Adolescência’ faz sucesso, mas não atinge seus supostos propósitos
‘Adolescência’ faz sucesso, mas não atinge seus supostos propósitos
Créditos: Reprodução Netflix
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Entende-se que, usando Adolescência como gatilho, pessoas inteligentes possam incitar conversas importantes. Mérito dessas pessoas. A série, ela mesma, se afoga em um barato melodrama do choque e do mea culpa, duas coisas que não geram pensamento.

Sem que haja legenda, isto é, sem alguém que a comente com alguma qualidade, ela apenas reitera as sirenes construídas a partir do conteúdo sensível à disposição de todos: “estamos em maus lençóis”, “nossos filhos perderam a noção”, “o mundo acabou” e outros clichês do maternalismo.

Por isso, assistir Adolescência é, para alguns, uma experiência frustrante: agita-nos, acima de tudo, ver assunto tão complexo e urgente ser tratado de maneira tão rasa.

Mas essa foi sempre uma regra geral da arte fraca: onde abunda a dramaticidade não sobra lugar para quase nada. Ou, como acontece muito, o excesso de dramaticidade está lá para esconder justamente essa falta, a ausência de densidade e meandros. No caso de Adolescência, essa falta é coroada com desfecho piegas, extraindo da culpa cristã tudo aquilo que ela pode fornecer: drena-se a nascente de uma infantolatria mariana que explode em violência. Nada termina porque a criança amadurece e segue seu rumo; ao contrário, o crime do garoto aborta a sua própria adolescência e implode a família. O urso de pelúcia recoloca o bebê inocente que o mundo já conspurcou. Paraíso perdido. O pano de fundo é o mesmo de sempre: o homem nasce bom; é a sociedade que o corrompe. Verbo truncado: adolescer, virar adulto. Horror puritano: a sexualidade emerge sem freio. Tabu em ruínas: melhor não falar a respeito.

Gente sagaz extrai papo de qualquer farelo. Paulo Emílio Salles Gomes até deu status a isso com sua máxima: “filme ruim que rende conversa boa”. Adolescência confirma a regra — mobiliza plateias e especialistas, mas segue a questão: que mundo é esse em que pais e mães precisam de um subproduto desses para “cair na real”? (Spoiler: nem caem; arte sem miolo costuma ser esquecida em semanas.) Em outras palavras, por que o melodrama de liquidação continua sufocando tudo à base de apelo comercial e chororô? Também dispensamos o elogio quadrado que vende *Adolescência* como aula de moral em tempos de degradação psíquica. Os “conteudistas” seguirão de joelhos diante do santo tríptico — “conscientização”, “ruptura da alienação”, “mais esclarecimento”. Seria um ótimo debate, aliás, justamente porque Adolescência não é didático coisa nenhuma.

O essencial, portanto, é o que Adolescência diz por conta própria — não o que projetamos sobre ela.

O que está lá? A emergência agressiva do desejo entre as crianças e adolescente? A violência de que são (ou sempre foram) capazes? A sua possível perversidade? A insegurança psíquica? A leniência dos pais? O linchamento moral em comunidades conservadoras?

Apesar das aparências, nada de exatamente novo figurou-se nessa série. O enorme desserviço da série é insinuar que a “economia da atenção” seja só uma embalagem high‑tech para problemas de sempre. Não é. Talvez a intenção dos autores fosse o contrário – mas faltou estofo, e o tiro saiu pela culatra.

Depois assustar o espectador, a narrativa de Adolescência simplesmente implode. No terceiro episódio, o garoto vira o clichê do “pavio curto”: pré‑macho tóxico, esmagado e esmagador por suas fragilidades egóicas. Difícil engolir que celular e redes inventaram essa psique; eles apenas agravaram um quadro antigo. Os autores até piscam para temas sérios — fake nudes, pornografia de vingança, automutilação induzida — mas não mergulham em nada. E lá vamos nós, decifrando emojis como se fosse aula de criptografia. Come on, dad… you’re embarrassing yourself.

Então, mais uma vez: o que exatamente se aprende ou se discute sobre o problema, se assim colocado?

Nada, porque tudo é epidérmico. Não se coloca em cena outra coisa que não seja o enredo gritante da cotidianidade, exagerado pela hipérbole do assassinato. Só que esse exagero mata tudo na raiz. O crime extraordinário paralisa a empatia e, ao ser hipertrofiado, desvia o foco da miséria ordinária: o achatamento psíquico do dia a dia. Não basta que a personagem da policial proteste contra o protagonismo do assassino se a série, em sua moldura, repete a “falha” que essa mesma personagem impugna. A garota assassinada é o anátema desse estranho sucesso.

Que tal então uma série em que o crime principal – de autoria difusa – fosse o abuso miúdo e pervasivo, o sufocamento permanente da autoestima a que estamos sujeitos nessa estúpida passarela de aparências? Uma série sem o crime pronunciado talvez não tivesse esse espetacular início. Mas o sofrimento psíquico das redes é uma realidade dolorosa, mesmo quando as crianças não chegam a matar por isso. “Eu sou feio? Me diga que sou bonito!”

Novamente, esse aspecto passa ao largo, é quase uma notinha no diálogo entre o infrator e a psicóloga forense. Esta, by the way, deveria ser cassada, por exercer a profissão daquele modo. Aliás, típico do fim-do-mundismo saxão no qual nada presta: a escola é gerida por incompetentes, os vizinhos são terrivelmente antipáticos, o mundo do trabalho foi triturado, a moral foi para o ralo, a justiça é uma farsa e o Estado aparece puramente como instituição total.

E assim, Adolescência faz sucesso, porém não atinge seus supostos propósitos, não acessa aquela universalidade que tanto comove. Estamos atolados na era do é sobre: o tema grita mais alto que o tratamento (a velha forma). Falta ainda a obra que encare essa urgência com coragem estética. Ela virá.

PS 1: Se a questão é conteúdo, convém acompanhar as manifestações excelentes da juíza Vanessa Cavalieri. Ela parece ter gostado de Adolescência, porém seu trabalho antecede e vale infinitamente mais que o produto da Netflix. Cavalieri nos conta que o cybercrime e outras delinquências morais – gravíssimas – estão alterando o perfil do jovem infrator que chega atualmente ao sistema judiciário. O que explica, inclusive, o frisson da mini-série nas encostas Sul e Norte do Espigão Mestre paulistano. A nova criminalidade não é mais estritamente periférica. Em tempos de narcisismo, tudo é mesmo uma questão de umbigo.

PS 2: O partido radical do plano sequência merece aplausos, mas acaba funcionando como pura virtuose desse naturalismo e não salva o produto de sua insipidez.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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