Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

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Adeus, companheiro

Esta semana, à última hora, depois de muito chorar, criei coragem para prestar homenagem a Pelé e vim a Santos acompanhar sua despedida

Adeus, companheiro
Adeus, companheiro
Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
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Ficamos, quase todos, um tempo suspensos no ar até que se abrisse um buraco sob os nossos pés: Pelé estava morto. E o mistério da morte sempre suscita em nós, de forma inevitável, memórias e reflexões.

Apenas cunhar em Pelé o título de rei, ou até mesmo de eterno, é, em certa medida, subestimar o significado de sua obra de vida. Um rei tem seus limites. É rei disso, rei daquilo, e limitado a um espaço determinado.

Pelé transcendeu isso tudo. Ele mostrou, por meio de seu futebol e de sua história, que o sentido da vida está acima de nossas vãs filosofias, e até mesmo das ideologias. Ele foi único, como cada um de nós.

O conservador Pelé demonstrou de que forma se pode, por meio da simplicidade, alcançar o que de mais complexo há em uma vida. Ele, com sua arte, foi reverenciado rigorosamente por todo o arco da diversidade humana.

Pelé nasceu como um artista pronto. Sua essência está explicitada na imagem que traz no seu olhar e no seu sorriso – das últimas às primeiras. Houve um tempo em que se atribuía aos seus olhos esbugalhados a capacidade da visão panorâmica exibida em seu modo de jogar.

Uma das primeiras imagens de Pelé a ficar cravada na minha memória remonta à minha infância. Quando garoto, fui levado por um primo mais velho ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, para assistir ao jogo entre Paulistas e Pernambucanos.

Lembro-me de ver, em um campo molhado pela chuva, uma bola passada com força à meia altura e ele, simplesmente, deixou que ela batesse no peito do pé e, cobrindo seu marcador, fosse encontrar o ponta-esquerda, livre, para avançar até a linha de fundo.

Contar jogada por jogada inesquecível levaria todo o tempo do século no qual ele foi escolhido o melhor atleta – não só jogador. Mas, antes dessa imagem que citei, houve outra, em um cinema, ainda em São Paulo, perto do Largo Santa Ifigênia, região central da cidade, logo depois do desembarque da sagrada Seleção de 58 com o nosso primeiro título mundial.

No quinto gol da final, ele apenas deixou que a bola do cruzamento tocasse sua cabeça e, resvalando na trave, fosse morrer mansamente no fundo da rede, deixando o goleiro agarrado à baliza depois de tentar, inutilmente, impedir o desfecho.

Ao surpreendente lance sucedeu-se um turbilhão de imagens repisadas pela televisão. Impossível esquecer do aparelho em preto e branco do vizinho, diante do qual eu, garoto apaixonado pela bola, passava a seguir ainda mais fielmente o conselho do sábio popular: “Agarrado à bola como a um prato de comida”.

São até hoje vívidas aquelas pelotinhas negras, que pareciam fantasmas dentro da camisa do Santos F.C. Que saudade me bate agora dos amigos Dorval, Coutinho etc.

Anos depois, eu teria a felicidade de compartilhar, dentro do campo, a mesma camisa peixeira e também encontros como adversários. Mas o maior dos encontros foi mesmo o do “Passe Livre”.

Como Ministro dos Esportes, entre 1995 e 1998, Pelé, mesmo depois de ter deixado o cargo, fez questão de levar às últimas consequências o ato oficial da abolição do “passe”.

Graças a ele tivemos a pá de cal nesse vínculo de natureza escravagista que sempre fora uma “pedra na chuteira” daqueles que, como eu, tiveram o futebol transformado em profissão, tamanha a paixão pela bola.

Mais adiante teríamos ainda outros encontros, sendo o mais significativo deles o momento no qual, convocados pelos colegas da luta antimanicomial, utilizamos o esporte como apoio ao tratamento psiquiátrico. Essa iniciativa, que eu acredito ser de suma importância, corria sérios riscos justamente em Santos, que era uma “ponta de lança” do projeto.

Menos tempo atrás, o companheiro me convidou para tomar café em sua casa, no Guarujá, mas fui adiando a visita e, diante do agravamento de sua doença, não consegui visitá-lo em condições difíceis.

Esta semana, à última hora, depois de muito chorar, criei coragem para prestar uma homenagem ao amigo e fui a Santos acompanhar sua despedida.

Adeus ídolo, companheiro e amigo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Adeus, companheiro”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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