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Ademir da Guia e o narcisismo

Com os objetivos coletivos acima dos individuais, o céu é o limite, ensina o craque

Ademir da Guia e o narcisismo
Ademir da Guia e o narcisismo
Imagem: Reprodução
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Quinta-feira 3 de novembro, as trocas de mensagens entre os palmeirenses registravam celebrações eufóricas. Felizes com a décima primeira conquista do Brasileirão, os palestrinos comemoravam um vídeo protagonizado pelo craque eterno, Ademir da Guia.

Como faria em campo, o Divino driblou o zagueiro adversário com o corpo e colocou gentilmente a bola nas redes, como quem pousa um beijo no rosto da amada:

“Eu enxergo no Palmeiras atual a arte da Primeira Academia com a solidez da Segunda, jogamos para a frente, mas sem nos descuidarmos da retaguarda. Nossa força é o grupo num mundo onde o individualismo vem ditando as regras em diferentes setores da sociedade. O Palmeiras dá mais uma aula. Ensinamos desta vez sobre a importância da união. Mostramos que os objetivos coletivos estão acima dos objetivos individuais. Provamos que, quando o ego fica em segundo plano, o céu é o limite”.

O ósculo Divino na face do espírito coletivo sugere considerações a respeito do individualismo agressivo que repontou nas hostes bolsonaristas após a proclamação da derrota nas urnas. Diante das manifestações, lembrei-me das digressões de Elisabeth Roudinesco no Dicionário Amoroso da Psicanálise:

“As patologias narcísicas tornaram-se dominantes nas sociedades democráticas depressivas do fim do século XX, marcadas pelo desaparecimento progressivo da frustração sexual tão característica de uma época ainda dominada pelo puritanismo. Em consequência, a sociedade individualista moderna, assolada pela ditadura das imagens, desabrocha na cultura do narcisismo e na contemplação exacerbada da própria imagem: da mania da selfie à empolgação literária pela autoficção, da exibição da vida íntima à apologia da ‘pós-verdade’. Tudo se passa como se agora o mundo externo tivesse menos importância do que o vivido emocional, e como se os fatos objetivos contassem menos, para modelar os espíritos, do que os grandes apelos à emoção e às opiniões pessoais”.

É a Heinz Kohut, psicanalista americano nascido em Viena, que devemos a análise mais pertinente dessa passagem de ­Édipo a Narciso. Entre 1960 e 1970, ele analisa as patologias do self como o equivalente de uma pulsão de morte, entre loucura e perversão, que conduz ao furor de destruição do outro e de si mesmo: uma doença praticamente imune aos tratamentos. E Kohut estende sua análise do narcisismo a fenômenos coletivos, interessando-se pelas seitas e as relações de dependência entre um guru e seus adeptos. A ideia de ligar o narcisismo a uma perversão que consiste em destruir o outro destruindo a si mesmo germinou em todas as sociedades pós-modernas do primeiro quarto do século XXI, consumidas pelo terror do inimigo interno, a ponto de os “perversos narcísicos” se transformarem, nas redes sociais, nos maiores vampiros da humanidade. Atestam isso, se necessário, as dezenas de sites de alerta psicológico a eles dedicados: “O perverso narcísico”, podemos ler, “é dotado de uma inteligência lógica assustadora e destituída de afeto. Manipulador invisível, sente alegria diante do espetáculo de sua decadência associado ao sentimento de dominação mórbida. Verdadeiro rolo compressor, é reconhecível sobretudo por seus amores tóxicos… Está em toda parte, no seu círculo profissional, no seio de sua família … Fazendo-se de vítima, o perverso narcísico semeia a cizânia com discrição, cultivando a suspeição mediante um assédio moral constante. Em outros termos, o perverso narcísico é o nome dado a tudo que, num mundo aparentemente civilizado, mina a partir do interior a humanidade do homem”.

A citação é longa, mas necessária para abordar o narcisismo dos ressentidos, fenômeno que rasteja nas redes (anti)sociais, os subterrâneos da sociedade de massa contemporânea.

Como o historiador Alan Bullock observou em relação ao nazismo, demagogos como Hitler “visavam apelar não para o racional, mas para as faculdades emocionais, aqueles ‘interesses afetivos’, contra os quais (como Freud apontou) estudantes da natureza humana e filósofos há muito reconheceram que os argumentos lógicos eram impotentes. Como esses demagogos, a indústria cultural também coloca em jogo não apenas emoções, mas também instintos irracionais e muitas vezes autodestrutivos, minando o pensamento racional e o interesse racional.

Embora eles não sejam a causa direta do ego fraco dos narcisistas, o nazismo e as mercadorias culturais exploram essa fragilidade e frustram a capacidade de resistir à repressão, ao oferecer satisfações suficientes para aplacar os indivíduos fracos e ressentidos que habitam os desvãos do capitalismo de massa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ademir da Guia e o narcisismo”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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