Justiça

Acordo para não processar? Não, muito obrigado

De pacote em pacote, direitos de acusados são ceifados e Estado Penal toma cada vez mais conta de tudo

Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Advertência inicial: não se trata de um artigo punitivista. O dia 24 de dezembro de 2019 ficará marcado pelas transformações promovidas pela Lei nº 13.964. O chamado Pacote Anticrime possui virtudes, vide a previsão do juiz de garantias e a disciplina da cadeia de custódia, e, ainda, atrocidades, a começar pelo aumento do tempo máximo de cumprimento de pena. Diante do novo, é sabido que três atitudes podem ser observadas: o deslumbramento, a resistência irracional e a análise crítica. Pois bem, este texto visa a se posicionar junto a essa terceira vertente no exame sobre o acordo de não-persecução penal.

A atual redação do artigo 28-A, CPP estabelece a possibilidade de determinada pessoa não ser processada. Inicialmente, o referido instituto poderia ser considerado como um verdadeiro salvador, já que inserido em um sistema de (in)justiça criminal que não cansa de ver os números de presos aumentarem. Todavia, diante de um dos seus requisitos, qual seja, a existência de confissão “formal e circunstanciada”, é necessária a realização de um exame mais detido.

A referida exigência se insere em um contexto mais amplo em que a doutrina comprometida com direitos e garantias fundamentais já se insurge contra a sumarização de procedimentos, pois há notório prejuízo para a defesa.

A situação se agrava quando a questão é examinada a partir de um prisma específico: a da pessoa presa, já que, por força do artigo 3º-B, inciso XVII, CPP, caberá ao juiz de garantias homologar o acordo, ou seja, o mesmo juízo competente para presidir a audiência de custódia. Ora, para que um acordo seja considerado como válido, não se mostra possível subsistir qualquer vício da vontade. Como não apontar a sua invalidade diante da situação de vulnerabilizado do custodiado apresentado? O que ele não aceitaria nesse cenário.

Antes que se questione o manejo do termo vulnerabilizado, é importante ter em mente as considerações de Boaventura de Sousa Santos:

E a palavra exacta é vulnerabilizados, e não vulneráveis. Efectivamente só existem grupos vulneráveis porque há outros grupos desmesuradamente mais poderosos que eles que são invulneráveis. Ou seja, ninguém é inatamente vulnerável, é vulnerabilizado pelas relações desiguais de poder que caracterizam a sociedade.”[i]

Com o intuito de dar contornos mais claros para esse exemplo, é relevante destacar o afirmado, por meio de “pós-moderna” ou então poética versão da língua portuguesa – “É de se lamentar que a instituição haja (sic) com tal postura” – pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro nos autos da Reclamação Constitucional nº 38769: “Na mesma proposta [de alteração do ato normativo que rege a audiência de custódia], revoga-se o esgrimado ato, disciplina-se a competência para homologação de acordos de não persecução penal, realização de audiências de custódia em prisões preventivas e temporárias, expansão do protocolo multidisciplinar de acolhimento do liberto à rede de assistência”.

A principal crítica jurídica não reside na sumarização do procedimento ou no completo desvirtuamento do que consiste um acordo, mas sim na já apontada exigência da realização de confissão formal e circunstanciada. Há, quanto a esse ponto, verdadeira desconsideração de um modelo de persecução penal pautado no princípio da dignidade da pessoa humana. O investigado deixa de ser sujeito de direito para se tornar um objeto capaz de fornecer algo desejado pelo acusador. Mediante o emprego de violência simbólica – ou reconhece a culpa ou será processado – o Estado-acusação visa a obtenção de um verdadeiro atalho investigativo. E o pior: com a ameaça de que se o investigado não colaborar ou se mostrar rebelde, advirá o sério risco de conhecer o local tido como caracterizador do Estado de Coisas Inconstitucional.]

É claro que alguns defensores – públicos ou privados – poderão afirmar que é uma vantagem o acordo e que sequer gera antecedentes. Para eles, o Texto Constitucional traz um imprescindível lembrete: a Advocacia e a Defensoria Pública são funções essenciais à Justiça, e não ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público.

À defesa criminal já basta o pecado de ter sido serviçal no período da Inquisição e não há mais espaço para um vergonhoso retorno.

A crítica ao chamado acordo de não persecução penal não se esgota no âmbito dogmático, pois um exame além das fronteiras do Direito pode – e deve – ser realizado para questioná-lo. Apesar da sua relevância, esse tipo de crítica não permite a declaração de inconstitucionalidade do instituto. E essa assertiva tem alvo certo: as audiências públicas na ADI’s que questionam preceitos da Lei nº 13.964/19 se aproximam e o fato de o Ministro da Justiça já ter demonstrado a sua antipatia ao juiz de garantias, ainda que lhe seja assegurada participação nas audiências públicas, deve ser tida como irrelevante. Se o citado integrante do Executivo se mostrou incapaz de assegurar o veto político, não deverá convencer a jurisdição constitucional com argumentos políticos, alarmista ou questões morais, pois o julgamento deverá ser feito por princípios jurídicos.

 

A censura não jurídica ao “acordo” de não persecução penal reside no fato dele se inserir em um contexto de veneração, de idolatria, a eficiência. Uma justiça eficiente seria, portanto, aquela que se faz com o menor custo e obtendo a mais rápida resposta.

Por qual razão se deve gastar – tempo, verbas públicas – com formalidades e “filigranas” jurídicas se a pessoa pode, desde já, reconhecer a sua culpa e arcar com os seus erros?

A questão toda é que esse discurso próprio do neoliberalismo e que coloniza o direito soçobra o Estado Democrático de Direito, o que é mais grave em um contexto de modernidade tardia, tal como a brasileira. Quanto a essa submissão, Alexandre Morais de Rosa teceu as seguintes considerações:

A magnitude das questões econômicas no mundo atual implica no estabelecimento de novas relações entre campos até então complementares. Direito e Economia, como campos autônomos, sempre dialogaram desde seus pressupostos e características, especificamente nos pontos em que havia demanda recíproca. Entretanto, atualmente, a situação se modificou. Não só por demandas mais regulares, mas fundamentalmente porque há uma inescondível proeminência economicista em face do discurso jurídico. Dito diretamente: o Direito foi transformado em instrumento econômico.”[ii]

A resistência ao “acordo” de não persecução penal é também ideológica e não se deve ter qualquer receio em realizar essa afirmação. O neoliberalismo tem se mostrado capaz de criar o Estado Penal Máximo. Tolo é aquele que acreditar que com a instituição da cultura de acordos desses celebrados, haverá mais investigação. Não e não! O fato de a prova testemunhal gozar de tanto prestígio é a prova de que o Estado não quer assumir a sua função. A expressão pode parecer ser grotesca, mas, quem sabe, assim, a indignação consiga sensibilizar o leitor: o “acordo” é a preguiça legalizada e isso não deve ser admitido.

Com o intuito de concluir, é ressaltada a possibilidade crítica ao disposto no artigo 28-A, CPP pelo viés estritamente jurídico ou mesmo a partir de uma análise mais ampla. Aqui não foi apresentada uma verdade, mas, ao menos, firmada uma posição. Direitos e garantias fundamentais se encontram no âmbito do que não pode ser sumarizado. Um acordo para ser válido pressupõe que a vontade não seja viciada. O direito de não produzir provas contra si não pode ser medido pelo “princípio da eficiência”. Defensor não é auxiliar de um Sistema de (in)Justiça Criminal e, caso assim pense, deve refletir sobre sua atuação. Daí, caso apresentada uma proposta desse “acordo”, me restará unicamente responder: não, muito obrigado.


[i] SANTOS, Boaventura de Sousa. Prefácio. In: SIMÕES, Lucas D et. Ali. (orgs.). Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 20

[ii] ROSA, Alexandre Morais. Críticas ao discurso da ‘Law and Economics’: a Exceção Econômica do Direito. In: ROSA, Alexandre Morais & LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a ‘Law & Economics’. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 55

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