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Acordo coroa estratégia de Netanyahu de priorizar “ameaça iraniana” em detrimento da “questão palestina”

Normalização de relações com os Emirados Árabes Unidos dá visibilidade à reorganização de forças do Oriente Médio

Acordo coroa estratégia de Netanyahu de priorizar “ameaça iraniana” em detrimento da “questão palestina”
Acordo coroa estratégia de Netanyahu de priorizar “ameaça iraniana” em detrimento da “questão palestina”
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Foto: Amos Ben Gershom/GPO
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*Por Daniel Douek e Michel Gherman

Na última campanha eleitoral, Benjamin Netanyahu espalhou cartazes com fotografias apertando as mãos de presidentes de países tão distintos como EUA, Donald Trump, da Rússia, Vladimir Putin, e Índia, Narendra Modi. Na propaganda televisiva, o primeiro-ministro israelense aparecia em cenários diversos, ora recebendo chefes de Estado, ora sendo recebido por eles, esforçando-se para mostrar ao público que, sob a sua liderança, o país encontrava integrado internacionalmente. “Netanyahu, outra liga”, dizia o slogan de campanha.

O anúncio do acordo para a normalização das relações bilaterais com os Emirados Árabes Unidos é mais um passo na construção dessa imagem. Por se tratar de um país árabe, integrante de um bloco que sempre condicionou o reconhecimento do Estado de Israel à resolução da questão palestina, tem sido apresentado como “histórico”. Em certo sentido, Netanyahu busca vender-se como estadista, equiparando-se aos ex-primeiros ministros Menachem Begin e Itzhak Rabin, que assinaram acordos de paz com Egito e Jordânia, respectivamente, os dois únicos países árabes que mantêm relações plenas com o Estado judaico. À biografia de Rabin, soma-se ainda o reconhecimento da Autoridade Palestina e do direito do povo palestino a seu próprio Estado.

Entretanto, não é bem disso que se trata. O acordo com os Emirados Árabes não exige de Netanyahu ou de seu partido, o Likud, nenhuma concessão ideológica. Ao contrário, coroa a estratégia do primeiro-ministro israelense de priorizar a pauta da “ameaça iraniana” em detrimento da “questão palestina”. Em certo sentido, o acordo dá visibilidade à reorganização de forças do Oriente Médio, não mais centrada no conflito entre israelenses e palestinos, mas, principalmente, na percepção da ameaça iraniana por Israel e por países do Golfo Pérsico. Sob seu governo, Israel costurou alianças discretas com adversários que viam no Irã um inimigo comum e a paz com os palestinos manteve-se distante.

Diante da impossibilidade de uma solução negociada com países nos quais Israel se mantém em estado de guerra ou com os palestinos, que exigiriam concessões, restava, para a construção de seu legado, a normalização das relações bilaterais com um país cujas relações já eram quase-normais, se considerarmos a existência de trocas comerciais e até diplomáticas de segundo e terceiro nível.

Circula a informação, confirmada pelo presidente Trump, de que, para viabilizar o acordo com os Emirados Árabes, Netanyahu teve que abrir mão do plano de anexação de territórios palestinos na Cisjordânia. Entretanto, mais do que capitulação, o primeiro ministro utilizou isso como o pretexto que necessitava para abandonar uma promessa de campanha que já sabia inviável.

Anexar os territórios ocupados, transformando-os em parte efetiva de Israel, consolidaria a ideia de Israel como Estado de apartheid, teria potencial de transformar as relações de força entre o mundo árabe e os Estados Unidos, criaria uma possibilidade de fortalecimento para o Irã e de grupos como ISIS e Hamas, além de isolar o país na Europa. Netanyahu sabia disso e fez sua promessa por uma questão meramente eleitoral.

De quebra, a suspensão do plano de anexação oferecia ao governo dos Emirados Árabes uma saída honrosa diante do estigma da traição perante a sua população e os países vizinhos. Internacionalmente, não se deve minimizar o peso simbólico do acordo. No “novo” Oriente Médio, o gesto pode abrir caminho para que outros países façam o mesmo, chegando até a Arábia Saudita, maior potência do Golfo e inimiga do Irã. Ao mesmo tempo, reforça a imagem de Israel. Além dos EUA, fiadores do acordo, ONU e países europeus teceram elogios após o anúncio.

Já para o público israelense, a conquista da legitimidade do país entre os vizinhos árabes pesa mais do que a incorporação de territórios na Cisjordânia, muito contestada por setores da população. A exceção fica por conta dos sionistas religiosos, que viam a anexação como possibilidade de concretização dos seus sonhos e com quem Netanyahu costurou relações desde que chegou ao poder e, hoje, se sentem traído. Nas próximas eleições, o primeiro-ministro pode sofrer um revés justamente desse grupo, que apoiou desde sempre e que, agora, vê seus projetos mais longe da concretização efetiva.

* Daniel Douek é cientista social, mestre em Letras pelo programa de Estudos Judaicos e Árabes da USP. Diretor do Instituto Brasil-Israel.

* Michel Gherman é historiador, co-coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ e pesquisador do Centro de Estudos de Israel e do Sionismo da Universidade de Beer Sheva.

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