Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Abrindo o baú da vida às vésperas de chegar aos 70 anos

Uma embalagem de incenso, ainda com cheiro de mil novecentos e setenta e dois, quando o perfume se espalhava pelo quarto enganando os pais

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Chegando aos 70 anos vive-se um excesso de passado, um volume de memórias acumuladas que não somem, transbordam, não desgrudam mais. Abre-se um baú físico de fatos e fotos, cheio de argumentos, defesas, ataques, vitórias e derrotas. Cartas amareladas em papéis quase puídos, juras de amor secretos, fotografias desbotadas. Recortes de jornais, pequenas notas sociais ultrapassadas, descolorindo.

Para somar o tempo, só uma calculadora.

O baú é azul marinho, de madeira, escrito no tampo e na parte da frente TGHU8965327, um esboço de equação formulada, nunca solucionada. Abrindo, encontram-se crônicas antigas publicadas em vários jornais. Umas ainda atuais, outras envelhecidas com o tempo.

Tem um calendário de 1974, que ele não joga fora jamais. Uma flâmula do Clube Campestre, uma colher de prata da Panair, uma tesoura do Ministério da Agricultura, um Livro do Bebê de 1950, capa alaranjada, uma preciosidade. Tem desenhos de crianças que passaram por sua vida. De Céline a Elodie, de Julião a Sara, de Maria a Marilia.

Tem poemas recortados, versos mal traçados, até um poema concreto premiado. A Dança das Cobras, Lovistori, Êxtase, Jango, Tango e Belo Horizonte. São versos construídos no exílio, alguns inéditos, muitos publicados, alguns perfurados por traças. Ali, valia a pena ser poeta.

Jornais e mais jornais. Capas do Caderno 2 dobradas em quatro, maltratadas pelo tempo com títulos bem elaborados. A angustia do homem morcego, A balada de Yoko Ono Lennon, Refazendo a procissão de Gil, Muito prazer: Custódio Mesquita e O filé do Moraes Moreira.

Vinte e cinco crônicas datadas. Nina Hagen: uma linda garota de Berlim, a história do deputado que deu um tiro na boca, a professorinha americana que explodiu no espaço, o casamento que acabou. Tempos passados, repletos de asteriscos explicados no pé de página. Enigmas, paixões encobertas, proibidas, vidas mal resolvidas, diários. Adesivos de plástico eu quero votar pra presidente, diretas já e Lula lá.

Quatro livros nunca publicados: Circo, Os Argonautas, Baile das Máscaras e O equilíbrio dos loucos. Um rascunhado chamado As canções que você fez pra mim, um outro arquitetado, Coração de Estudante, a biografia de Edson Luiz de Lima Souto.

Jornais universitários mimeografados, troféus de um tempo em que a censura era cruel. O ódio de soldados reprimindo estudantes retratados em branco e preto.

Um diploma de honra ao mérito concedido pelos Irmãos Maristas, outro da primeira comunhão datado de mil novecentos e cinquenta e sete. Um santinho de 1968 das Bodas de Ouro dos avós, outros santinhos com fotos de mortos: duas tias, um tio, um sobrinho, um vizinho.

Uma embalagem de incenso, ainda com cheiro de mil novecentos e setenta e dois, quando o perfume se espalhava pelo quarto enganando os pais. Um chumaço de propagandas arrancadas das paginas da Seleções do Readers’s Digest. Anúncios machistas, racistas, com o um pé no fascismo que acabaram não entrando no último trabalho.

Todos os clippings do Sempre um Papo, recortes elogiosos fotocopiados. Fotografias sem barba, cabelo ora curto, ora encaracolado, rosto fino, rosto gordo, pele curtida, envelhecida. Seis canetas caras, presente da Globo Livros. Todos os contratos assinados e rubricados guardados num só envelope azul.

CDs soltos, sem capa, objetos semi-identificados. Talvez o primeiro banho da filha registrado por um cineasta, um programa Roda Viva com Tom Zé entrevistado, dois Programas do Jô, três Mais Você, um Marcia Peltier. Um Encontro com Fatima Bernardes e um Metrópolis com Cadão Volpato.

As imagens de uma cirurgia realizada pelo robô Da Vinci para inserção de um duplo J que restaura a drenagem urinária fisiológica. Alívio geral.

Ele abriu o baú à procura das fotos do primeiro casamento no meio de tanta papelada. Chama uma japonesa no pensamento:

– Marie Kondo! Onde estão as fotografias daquele casamento tão atrapalhado?

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