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Médica, professora titular da UFRJ, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde

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Aborto não é tabu

Será que os governos progressistas decidiram, tacitamente, abrir mão do debate sobre a absurda vigência de normas legais que criminalizam o aborto?

Aborto não é tabu
Aborto não é tabu
Protesto contra o PL do Aborto na Avenida Paulista, em São Paulo. Foto: Nelson Almeida/AFP
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No mês em que se comemora o Dia das Mulheres, o aborto e o direito de decisão sobre a gestação estiveram presentes nas manifestações nas ruas e ausentes dos discursos e práticas oficiais. Não são inéditas as controvérsias e evidências sobre a correlação positiva entre o financiamento público para serviços de saúde que realizam aborto e a redução da mortalidade infantil e materna.

Também não é novo o conhecimento sobre as relações entre a saúde, gênero e outros tipos de injustiças sociais. Em meados do século XIX, comprovou-se, na saúde pública, a relação entre racismo, classe social, sexualidade e deficiência e os legados contínuos do colonialismo, da escravidão e do imperialismo expressos em economias políticas de dominação e expropriação dos direitos humanos.

Tampouco são novidades os recentes avanços relacionados à permissão e à descriminalização do aborto nos contextos democratizantes de países vizinhos ou a intensificação das polêmicas sobre direitos às identidades de gênero e reprodutivos, presentes na agenda da extrema-direita. Em um panorama geral, no qual se contabilizam mais progressos do que atrasos, a posição do Brasil tornou-se excêntrica.

Será que os nossos governos progressistas tomaram a decisão tácita de desistir – sem combinar com os eleitores e, especialmente, com as eleitoras – de apresentar para o debate a absurda vigência de normas legais que criminalizam o aborto? Oportunismos, fake news e advertências sobre a perda momentânea de apoios políticos justificam a transformação de um risco para a saúde pública em tabu?

Quem interrompeu o inusitado silêncio das personalidades e instituições políticas democráticas sobre aborto foi a extrema-direita. O Projeto de Lei do Estupro (PL 1.904 de 2024), propondo a punição pela realização de abortos em meninas estupradas, fez ruído.

Entidades feministas, setores de movimentos religiosos, segmentos do Poder Judiciário e parlamentares – entre os quais os evangélicos – barraram a tentativa de redobrar a brutalidade.

Foi uma disputa pontual, que permite interpretações distintas, entre as quais a de ter sido pensada para assanhar as redes sociais. Mas sinaliza, como já vinham revelando pesquisas de opinião, duas perspectivas sobre o tema: ser contra a legalização é totalmente diferente de ser a favor da criminalização.

A tática usual de dogmáticos religiosos ultraconservadores – em geral, homens brancos – de distorcer e se apropriar da retórica dos direitos humanos reduz mulheres a meras matrizes do parto. Mesmo entre mulheres que rejeitam o feminismo, associando-o ao aborto, a maior preocupação é com uma suposta sexualização precoce de crianças, em escolas que são espaços de socialização, mas perigosas, por estimular a adoção de identidades de gênero LGBTQIAP+.

Sabemos que não há consenso sobre a legalização e nem mesmo sobre a descriminalização. Contudo, os estereótipos associados ao temor de “destruição” das famílias não se disseminam homoge­neamente nem se tornam eternos.

Houve mudanças na linha do tempo da violência contra as amulheres. Foram marcantes a retirada do termo “mulher honesta” do Código Penal e a promulgação da Lei Maria da Penha, que as protege contra a violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.

Ainda assim, a pesquisa divulgada pela Rede de Observatórios de Segurança, em 2025, intitulada Elas Vivem, revelou o aumento dos eventos de violência contra mulheres, inclusive homicídios, feminicídios e transfeminicídios. Trata-se de um padrão de iniquidades nada trivial, especialmente se contabilizarmos as 13 mil crianças estupradas que foram mães em 2023.

Por trás das injustiças estão normas de gênero machistas: “homens e esperma ativos” e “fêmeas e óvulos passivos”, como se os primeiros fossem “programados” para a “libertinagem” e não utilização de contraceptivos. Essa ideia passa pelo pressuposto de que a maternidade é um dever natural, e mesmo patriótico.

Os antiaborto talvez não saibam, mas, em relação aos direitos reprodutivos, somos “uma Venezuela”. Vivemos em um mundo saturado por sexismo, racismo, capacitismo, degradação, destruição ecológica, desigualdades e ataques à democracia e à ciência, mas também repleto de vida, sensibilidade e beleza. Ainda temos escolhas. •

Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aborto não é tabu’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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