Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A vida como ela era – 3

Depois da segunda dose da vacina, resolveu colocar o nariz do lado de fora não sem antes tomar um banho de álcool gel e colocar uma máscara

Foto: iStock
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3.

Ele deixou o aeroporto internacional de Zurique ouvindo Stravinsky como música de fundo e os termômetros registrando 8 graus abaixo de zero. Doze horas e pouco depois, o avião da Swissair pousou no Galeão, na cidade que ele ainda acreditava ser maravilhosa. O termômetro estava quebrado, indicando apenas um 88 apagado, mas ele soube que aquele calor que fazia por ali estava em torno de 40 graus. Sim, Rio 40 graus!

Ainda na capital suíça, a lembrança que ficou da despedida de um exílio de quase uma década, foi a de um senhor grisalho, elegantíssimo num casaco preto, sentado ao lado de uma pequena mala de couro, lendo O Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsin.

Aqui, a primeira imagem que viu foi a de uma criança de uns quatro, cinco anos, batendo os pés no chão numa birra sem fim, revoltado com o seu sorvete de chocolate que havia caído no chão, virado pra baixo. Enquanto derretia no chão quente, a mãe vestindo um top e um short curtíssimo, gritava com ele que não, não, não ia comprar outro. Banzé.

 

Ele sentou-se, colocou as bagagens do lado, enquanto esperava os pais que vieram buscá-lo. Retirou da carteira uma nota de moeda brasileira enviada pelo irmão, para que tomasse um guaraná bem gelado assim que chegasse, para matar a sede e a saudade. Fez isso. Foi até a lanchonete, criou coragem e pediu para a mocinha detrás do balcão: Eu queria um guaraná!, disse ele. Querias… disse ela. Assustado, ensaiou um sorriso amarelo. Em segundos, estava com a garrafa e o copo de guaraná na sua frente. Estupidamente gelado.

Mais tarde, soube que o tal querias era o bordão de um personagem de um programa humorístico na televisão, estava na moda. Todo mundo brincava com isso: querias!

Ele passou algumas horas no Rio de Janeiro e voou para Belo Horizonte, sua terra natal. Sobrevoando a cidade antes do pouso, ficou assustado com as montanhas que haviam sido engolidas pela MBR durante o seu exílio. Lá do alto, ele via inúmeros tratores amarelos da Caterpillar, como formigas saúvas, destruindo a natureza.

Deixando o aeroporto da Pampulha, viu numa Variant, um adesivo de plástico com os dizeres: Olhai bem as montanhas! uma ideia do artista plástico Manfredo Souzaneto, um dia entrevistado em Paris para o jornal Estado de Minas

Em quinze dias de Minas Gerais, comeu muito pão de queijo, almoçou frango caipira, arroz, tutu, angu e quiabo. Comeu jabuticaba no pé, goiabada com queijo, vaca atolada, comeu torresmo e tomou Mate-Couro.

Andou pela cidade, viu os edifícios destruindo as coisas belas do bairro do Carmo, jardins com roseiras das casas dos anos 1960, serem transformados em estacionamentos de restaurantes a quilo e viu as ruas de paralelepípedos sendo asfaltadas e árvores frondosas desaparecidas. 

No décimo sexto dia pegou um ônibus da Cometa e foi a São Paulo conhecer aquela loucura. No dia seguinte, começou a trabalhar no Estadão como separador de telex: Oriente Médio, Ásia, Europa, América do Sul, EUA, Cuba, Malvinas, Sandinistas.

A vida dele seguiu. O casamento acabou, pulou da imprensa escrita para a televisão, passou dez anos na ponte aérea, cansou. Casou novamente, plantou árvores, escreveu livros, teve mais duas filhas.

Muitos anos depois, trancou-se em casa durante um ano. Agora, depois da segunda dose da vacina, resolveu colocar o nariz do lado de fora, de tempos em tempos, não sem antes tomar um banho de álcool gel e colocar uma máscara cobrindo o nariz e a boca. A vida perdeu a graça, mas ele continua de pé, disposto a contar muitas histórias. 

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