Opinião

A velha fantasia do tesouro externo

De Colombo a Trump, a repetição histórica da violência predatória revela a recusa em reconhecer nossas próprias riquezas internas

A velha fantasia do tesouro externo
A velha fantasia do tesouro externo
O presidente dos EUA Donald Trump. Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
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“Nós somos da altura do que vemos.”
Fernando Pessoa

Em grande parte, somos regidos pelo inconsciente. Entretanto, pouco nos damos conta disso no cotidiano. Buscamos riquezas mas, paradoxalmente, deixamos essa enorme riqueza interna encoberta, quase intacta — uma fonte inesgotável de conhecimento, prazer e novas linguagens.

São muitas as fábulas, inclusive infantis, que aludem alegoricamente a esse tesouro oculto: da caverna encantada de Ali Babá ao gênio aprisionado na lâmpada mágica, capaz de realizar todos os desejos. Ainda assim, colocamos a realização desses desejos fora de nós. Não parece acaso que o Ocidente tenha situado tais narrativas no Oriente.

A ameaça de invasão da Venezuela por Donald Trump — que segue os passos do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, recorrendo a uma guerra externa para desviar a atenção de um escândalo — não estaria dissociada dessa busca incessante de riquezas fora da própria capacidade de trabalho e de “mirar da altura do que somos”.

Se olharmos retrospectivamente, não foi assim que os Estados Unidos se fizeram grandes? Não foram as ingerências na América Latina e Caribe, na África e no Oriente Médio que lhes permitiram acumular riquezas no pós-guerra? Não foi assim no Brasil, em 1964, e, antes, no Irã (1953) e no Congo (1961)?

Dessa forma, como o slogan trumpista “Faça a América Grande Novamente” poderia não implicar novas guerras e invasões, se foram justamente elas que deram sustentação à “América Grande”?

Em contraposição a essa violência predadora, os povos originários das Américas ergueram culturas de paz, como ilustra 1492, Anacaona, a insurgente do Caribe (Editora Jandaíra), de Paula Anacaona:

“Na noite de Natal, os marinheiros decidem fazer uma pausa: tudo está calmo, o mar está liso como um espelho… Lentamente, uma das caravelas [dos espanhóis] se choca contra os recifes que margeiam a ilha. (…) Guakanagarik envia todo o seu povo para ajudar os marinheiros espanhóis a transferir a carga para suas canoas antes que tudo se perca. (…) Colombo se surpreende com a empatia do cacique, a quem descreve ‘em lágrimas’ (…) Isso o fez escrever em seu diário: ‘Eles amam o próximo como a eles mesmos’. Os espanhóis conseguem salvar a madeira do navio e a usarão para construir um forte, o Forte da Navidad.”

Sobre os taínos, uma das principais etnias do Caribe, a autora esclarece:

“Os taínos frequentemente têm sido comparados ao ser humano num estado de pureza ‘original’. Pensar assim significaria desconsiderar a avançada organização política da ilha, as inúmeras horas investidas no cruzamento de espécies, no cultivo, na construção de diques e canais, na observação do céu para prever fenômenos meteorológicos. (…) Ao longo dos séculos, os taínos adaptaram suas terras em perfeita harmonia.”

Mas, ao olhar para o presente caribenho, percebemos o desastre promovido pelos colonizadores. O Haiti, com 80% do território sob domínio de gangues armadas, é o símbolo mais evidente.

Ao extermínio quase total dos povos originários seguiu-se a colonização forçada da região por africanos escravizados. Assim, não se pode entender o Caribe de hoje sem remeter à África, origem da maioria de sua população contemporânea. Infelizmente, nossa política externa ainda vacila em reconhecer essa relação necessária e indissolúvel.

Em Por uma Revolução Africana (Editora Zahar), Frantz Fanon aprofunda os conceitos de exploração e racismo:

“O racismo salta aos olhos precisamente por fazer parte de um todo bastante típico: o da exploração desavergonhada de um grupo de homens por outro grupo que atingiu um estágio de desenvolvimento técnico superior. (…) O hábito de considerar o racismo como uma disposição de espírito, uma tara psicológica, deve ser abandonado.”

E explicita sua funcionalidade:

“O colonialismo organiza a dominação de uma nação após a conquista militar.”

Em chave positiva, cultural e étnica, Fanon acrescenta:

“Como diria o célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão.”

Para nós, brasileiras e brasileiros, também o são a música, a culinária, a capoeira, o sincretismo religioso e tantas outras expressões culturais.

Em Seja Homem (Editora Dublinense), JJ Bola menciona uma entrevista de Laverne Cox à Time, sobre nossas inseguranças diante do outro:

“As pessoas não querem interrogar criticamente o mundo à sua volta. Quando tenho medo de alguma coisa ou me sinto ameaçada, é porque essa coisa desperta algum tipo de insegurança em mim.”

Bola conclui:

“O que permanece no horizonte é a necessidade de compreendermos as experiências vividas por cada um, aprendendo com as realidades de pessoas iguais e diferentes de nós. Essa troca nos permite crescer e desenvolver um entendimento mais genuíno dos indivíduos, para que possamos lutar por um mundo onde as pessoas não sejam marginalizadas por serem elas mesmas.”

Bem-vinda a igualdade — e a diversidade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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