Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

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As lições de Norberto Bobbio, o Estado de Bem-Estar Social e a “agenda perdida” do Brasil

Diretas-Já, outro percalço na caminhada tortuosa do País. Bobbio apontava os caminhos da social-democracia - Imagem: Paola Agosti e Geraldo Guimarães/Estadão Conteúdo
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Sexta-feira, 23 de setembro. Ao som dos estampidos das armas bolsonaristas que miram as cabeças, troncos e membros dos cidadãos adversários, recebo um telefonema do amigo José Serra. O senador, ex-candidato à Presidência e ex-governador de São Paulo solicitava minha assinatura em manifesto de apoio à sua caminhada para conquistar uma cadeira na Câmara Federal.

Aceitei, não por nossa amizade, mas em respeito aos princípios declarados na véspera, 22 de setembro, por Fernando Henrique Cardoso na nota publicada nas redes sociais: “Peço aos eleitores que votem no dia 2 de outubro em quem tem compromisso com o combate à pobreza e à desigualdade, defende direitos iguais para todos independentemente da raça, gênero e orientação sexual, se orgulha da diversidade cultural da nação brasileira, valoriza a educação e a ciência e está empenhado na preservação de nosso patrimônio ambiental, no fortalecimento das instituições que asseguram nossas liberdades e no restabelecimento do papel histórico do Brasil no cenário internacional”.

Nos anos 70 e 80 do século passado testemunhei a intensa convivência entre Lula e Fernando Henrique. Cada um a seu modo exercitava a política como vocação e mediação. Mediação entre os dois sistemas de vida que regulam o equilíbrio das sociedades capitalistas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses que se realizam por meio do mercado. Nesse jogo de mediação, crucial para a vida moderna e civilizada, deve-se reconhecer a legitimidade dos interesses contrapostos, um exercício permanente dos governos comprometidos com a soberania popular.

A Constituição Cidadã de 1988 aplainou o terreno para o reconhecimento dos direitos sociais e econômicos, acolhidos na posteridade da Segunda Guerra Mundial por europeus e norte-americanos. ­Roosevelt, Atlee, De Gaulle, De Gasperi e Adenauer sabiam que não era possível entregar o desamparo das massas ao desvario de soluções salvacionistas e demolidoras das liberdades. Por isso sacralizaram os princípios do liberalismo político para expurgar da vida social o arranjo econômico liberal dos anos 20, matriz das desgraças sociais que engendraram os coletivismos. Ao impor o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o nascimento até a morte, as lideranças democráticas subiram os impostos sobre os afortunados e, assim, ensejaram a prosperidade virtuosa, igualitária e garantidora das liberdades civis e políticas nos Trinta Anos Gloriosos.

No livro Esquerda e Direita, ­Norberto Bobbio envereda por um caminho de poucos seguidores no debate político. Em sua trajetória Bobbio estabelece uma distinção interessante entre o Centro Excludente do Terceiro Incluído e o Centro Inclusivo do Terceiro Includente. ­Suas lições poderiam servir para a turma da terceira via. No debate político, diz ele, o Terceiro Includente é geralmente apresentado como a tentativa de uma terceira via, ou seja, de uma posição que, ao contrário do centro, não está no meio entre a direita e a esquerda, mas busca ir além de um e de outro. Na prática, uma política de terceira via é uma política centrista, mas o ideal é que isso não seja representado como forma de compromisso entre dois extremos, mas como uma superação contemporânea de um e outro e, portanto, como uma aceitação e supressão simultâneas destes (e não, como na posição do Terceiro incluído, rejeição e separação). O Terceiro Includente sempre pressupõe os outros dois: enquanto o Terceiro incluído descobre sua própria essência expulsando-os, o Terceiro includente se alimenta deles. O Terceiro Incluído é apresentado, sobretudo, como práxis sem doutrina, o Terceiro Includente acima de tudo como doutrina em busca de uma práxis, que no momento em que é colocada em prática é realizada como uma posição centrista.

Os ensaios de civilidade no País foram interrompidos pelo golpe de 1964

Posso estar enganado ainda uma vez, mas imagino que Bobbio cuida de afirmar os caminhos da social-democracia que Lula percorreu e o PSDB de Fernando Henrique e Serra almejou percorrer. O Estado Social-Democrata foi construído pela luta política dos subalternos no século XX e impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o seu nascimento até a sua morte. Mulheres e homens serão investidos nestes direitos desde o primeiro suspiro, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.

Essa dívida da sociedade para com o cidadão deve ser compensada por outra, do cidadão para com a sociedade: o dever de pagar os seus impostos, de respeitar a lei, de cooperar com o trabalho social, enfim, de retribuir o esforço comum.

As particularidades da formação do capitalismo brasileiro lançaram o País na senda da desigualdade ao longo do processo de desenvolvimento. Enquanto a consolidação e a expansão dos direitos nas economias e sociedades desenvolvidas datam do pós-Guerra, no Brasil os ensaios de civilidade foram interrompidos pelo golpe de 1964. A tentativa de recuperar a autêntica e verdadeira “agenda perdida” encontrou guarida nos movimentos de redemocratização que desaguaram na Constituição de 1988. Tanto lá como cá, os avanços do Estado Social e dos direitos do cidadão não são acervo de um político ou partido, mas conquistas da população ao longo de décadas de participação democrática

Nas pegadas da Constituição Cidadã do doutor Ulysses Guimarães, as políticas sociais empreendidas por dona Ruth Cardoso foram intensificadas nos governos do ex-presidente Lula, desenvolvidas com grande abrangência e acerto. Foram notáveis os avanços no projeto de redução das desigualdades.

Os grandes pensadores da modernidade encaravam com horror a possibilidade de vitória dos grupos que veem no direito e na formalidade da lei obstáculos ao exercício da moral. Para eles, tais protestos não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à sua própria particularidade que é desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade.

Seria uma insanidade, no mundo moderno e complexo, tentar substituir os preceitos e a força da lei pela presunção de virtude autoalegada por qualquer grupo social ou, pior ainda, por aqueles que ocupam circunstancialmente o poder. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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