Nossos anciões e líderes indígenas nos sussurraram, nos alertaram e nos gritaram sobre a agonia da Terra e como ela se voltaria sobre nós. A nossa voz foi calada, humilhada, assassinada secularmente. Enquanto o conhecimento tradicional indígena foi ignorado ou no máximo apropriado, o conhecimento científico passou a corroborar cada vez mais as falas de nossos ancestrais. A comunidade científica internacional começou a alertar sobre a elevação da temperatura terrestre e as graves consequências dela.
Diante das vozes da ciência, cada vez mais uníssonas em pesquisas, relatórios e alertas dos especialistas do mundo inteiro, líderes globais, apesar das tentativas, não conseguiram ignorá-las. A partir da pressão científica e social, foi criada a Conferência das Partes, que é o órgão supremo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, na qual reúnem-se os países integrantes ano após ano, em uma via-crúcis de hipocrisia e burocráticas negociações climáticas.
Governos do mundo inteiro se reuniram em novembro deste ano no Egito, em mais uma Conferência das Partes, onde as discussões tem o poder de determinar o futuro de toda vida na Terra. Porém transformam um dos debates mais urgentes da nossa geração em um grande mercado do clima, negociando o futuro das bilhões de pessoas e das próximas gerações, além da fauna e flora do nosso planeta. Eles mostram que governar pela morte é o que entendem de fato e atestam que o mercado verde, já conhecido como greenwashing, nasce com a necropolítica.
Não pensem que nós indígenas nos distanciamos desse debate por sabermos que ele é um grande teatro da ganância capitalista antropocêntrica.
Pelo contrário, estamos lutando em diferentes frentes e nossa participação nas COPs é histórica: desde a ECO-92 levantamos nossas vozes na defesa dos nossos territórios nesses espaços, pois já entendíamos que a nossa cosmovisão propiciava a preservação das maiores florestas do mundo, em uma relação direta com a temperatura da terra sob nossos pés. Na Carta do Povos Indígenas da ECO-92 já reivindicávamos a demarcação dos nossos territórios e um fundo especifico para povos indígenas.
Se antes os governos não sabiam da importância dos povos indígenas para o clima da Terra, hoje temos amplos estudos que atestam a grande relevância da nossa gestão e dos serviços ambientais que prestamos ao mundo. A revista Proceedings of the National Academy of Sciences publicou uma pesquisa recente que comprova que as Terras Indígenas são essenciais para a manutenção dos estoques de carbono. Dados da ONU revelam que povos indígenas preservam 80% da biodiversidade do planeta, mesmo representando menos de 5% da população mundial.
Nós, povos indígenas, somos a última fronteira verde da Terra, somos as reais autoridades climáticas e ambientais: não existe solução climática sem a nossa participação direta nas negociações. Apesar de tudo, continuamos às margens dos espaços de decisões globais, pois não há vontade política real de solucionar a crise que vivemos, tampouco há reconhecimento da necessidade da participação plena da sociedade civil nas mesas de decisões.
Contraditoriamente, lobistas de combustíveis fósseis têm maior representação que os dez países mais impactados pela crise climática, somados. No total foram 636 lobistas registrados, são o dobro dos indígenas que estiveram presentes, esses dados fazem parte do relatório feito pela organização Global Witness, em parceria com a Corporate Accountability e a Corporate Europe Observatory.
Trata-se de um escárnio global, há um crime ambiental planetário em curso, no qual os criminosos são convidados à mesa para solucionarem seus próprios delitos e as vítimas são afastadas.
Nesse cenário, três décadas se passaram e poucos avanços foram alcançados e as conferências continuam feitas de discursos vazios e esquivas dos maiores poluidores. Apesar de alguns comemorarem os resultados da última COP, principalmente pela criação de um fundo de perdas e danos para países vulneráveis, o que é uma conquista considerável para justiça climática, não existe clareza sobre os termos dos acordos de financiamento e ainda não foi definido quem paga e quem recebe.
Ao refletirmos sobre esta conquista histórica equacionada aos retrocessos, como a retirada no texto final da meta de limitar o aquecimento em até 1,5°C e supressão do termo “redução gradativa” de todos os combustíveis fósseis – principal causa do aquecimento global – que havia no texto da COP de Glasgow, o saldo final é nefasto.
Em outras palavras, os países que estão destruindo o mundo declaram que não vão fazer nada de concreto para estancar a crise climática, ou seja, vão continuar destruindo, mas prometem dar recursos para os mais vulneráveis que vão ser atingidos pelas suas emissões. É como fazer o seguinte acordo: estamos destruindo sua vida e vamos continuar, mas começaremos a pagar pela destruição que promovemos, faremos um seguro que vai reparar as perdas e os danos que você certamente terá. É simplesmente um acordo sórdido assinado e validado pelos governos da Terra.
Para nós indígenas, o texto final do Egito ainda traz um retrocesso sem precedentes: a menção aos direitos indígenas foi retirada. Um claro desalinhamento político com as últimas pesquisas científicas e com os direitos humanos. Os lobos da COP-27 abocanharam o nosso futuro, e pretendem continuar lucrando com as suas ações financeiras poluidoras e maléficas para o clima.
Já nós, povos indígenas, vamos continuar “mantendo os céus”, como guardiões das florestas e despoluidores dos ares, apesar de termos suportado o insuportável por séculos. Mais do que nunca, precisamos de unificação e pressão por parte da sociedade, suas organizações e movimentos por todo o mundo, numa coalizão pelo clima, pois esta é uma luta de toda humanidade.
Esse texto é dedicado à memória de Paulo Paulino Guajajara, líder indígena e guardião da floresta, brutalmente assassinado por defender a Terra.
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