Narubia Werreria

Ativista indígena e ambiental do Brasil e atualmente presidente do Instituto Indígena do Tocantins.

Opinião

A última fronteira verde

Para os povos indígenas, os resultados da COP-27 foram um escárnio

Mobilização indígena em Brasília contra o PL 490. Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real
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Nossos anciões e líderes indígenas nos sussurraram, nos alertaram e nos gritaram sobre a agonia da Terra e como ela se voltaria sobre nós. A nossa voz foi calada, humilhada, assassinada secularmente. Enquanto o conhecimento tradicional indígena foi ignorado ou no máximo apropriado, o conhecimento científico passou a corroborar cada vez mais as falas de nossos ancestrais. A comunidade científica internacional começou a alertar sobre a elevação da temperatura terrestre e as graves consequências dela.

Diante das vozes da ciência, cada vez mais uníssonas em pesquisas, relatórios e alertas dos especialistas do mundo inteiro, líderes globais, apesar das tentativas, não conseguiram ignorá-las. A partir da pressão científica e social, foi criada a Conferência das Partes, que é o órgão supremo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, na qual reúnem-se os países integrantes ano após ano, em uma via-crúcis de hipocrisia e burocráticas negociações climáticas.

Governos do mundo inteiro se reuniram em novembro deste ano no Egito, em mais uma Conferência das Partes, onde as discussões tem o poder de determinar o futuro de toda vida na Terra. Porém transformam um dos debates mais urgentes da nossa geração em um grande mercado do clima, negociando o futuro das bilhões de pessoas e das próximas gerações, além da fauna e flora do nosso planeta. Eles mostram que governar pela morte é o que entendem de fato e atestam que o mercado verde, já conhecido como greenwashing, nasce com a necropolítica.

Não pensem que nós indígenas nos distanciamos desse debate por sabermos que ele é um grande teatro da ganância capitalista antropocêntrica.

Pelo contrário, estamos lutando em diferentes frentes e nossa participação nas COPs é histórica: desde a ECO-92 levantamos nossas vozes na defesa dos nossos territórios nesses espaços, pois já entendíamos que a nossa cosmovisão propiciava a preservação das maiores florestas do mundo, em uma relação direta com a temperatura da terra sob nossos pés. Na Carta do Povos Indígenas da ECO-92 já reivindicávamos a demarcação dos nossos territórios e um fundo especifico para povos indígenas.

Se antes os governos não sabiam da importância dos povos indígenas para o clima da Terra, hoje temos amplos estudos que atestam a grande relevância da nossa gestão e dos serviços ambientais que prestamos ao mundo. A revista Proceedings of the National Academy of Sciences publicou uma pesquisa recente que comprova que as Terras Indígenas são essenciais para a manutenção dos estoques de carbono. Dados da ONU revelam que povos indígenas preservam 80% da biodiversidade do planeta, mesmo representando menos de 5% da população mundial.

Nós, povos indígenas, somos a última fronteira verde da Terra, somos as reais autoridades climáticas e ambientais: não existe solução climática sem a nossa participação direta nas negociações. Apesar de tudo, continuamos às margens dos espaços de decisões globais, pois não há vontade política real de solucionar a crise que vivemos, tampouco há reconhecimento da necessidade da participação plena da sociedade civil nas mesas de decisões.

Narubia Werreira. Foto: Divulgação

Contraditoriamente, lobistas de combustíveis fósseis têm maior representação que os dez países mais impactados pela crise climática, somados. No total foram 636 lobistas registrados, são o dobro dos indígenas que estiveram presentes, esses dados fazem parte do relatório feito pela organização Global Witness, em parceria com a Corporate Accountability e a Corporate Europe Observatory.

Trata-se de um escárnio global, há um crime ambiental planetário em curso, no qual os criminosos são convidados à mesa para solucionarem seus próprios delitos e as vítimas são afastadas.

Nesse cenário, três décadas se passaram e poucos avanços foram alcançados e as conferências continuam feitas de discursos vazios e esquivas dos maiores poluidores. Apesar de alguns comemorarem os resultados da última COP, principalmente pela criação de um fundo de perdas e danos para países vulneráveis, o que é uma conquista considerável para justiça climática, não existe clareza sobre os termos dos acordos de financiamento e ainda não foi definido quem paga e quem recebe.

Ao refletirmos sobre esta conquista histórica equacionada aos retrocessos, como a retirada no texto final da meta de limitar o aquecimento em até 1,5°C e supressão do termo “redução gradativa” de todos os combustíveis fósseis – principal causa do aquecimento global – que havia no texto da COP de Glasgow, o saldo final é nefasto.

Em outras palavras, os países que estão destruindo o mundo declaram que não vão fazer nada de concreto para estancar a crise climática, ou seja, vão continuar destruindo, mas prometem dar recursos para os mais vulneráveis que vão ser atingidos pelas suas emissões. É como fazer o seguinte acordo: estamos destruindo sua vida e vamos continuar, mas começaremos a pagar pela destruição que promovemos, faremos um seguro que vai reparar as perdas e os danos que você certamente terá. É simplesmente um acordo sórdido assinado e validado pelos governos da Terra.

Para nós indígenas, o texto final do Egito ainda traz um retrocesso sem precedentes: a menção aos direitos indígenas foi retirada. Um claro desalinhamento político com as últimas pesquisas científicas e com os direitos humanos. Os lobos da COP-27 abocanharam o nosso futuro, e pretendem continuar lucrando com as suas ações financeiras poluidoras e maléficas para o clima.

Já nós, povos indígenas, vamos continuar “mantendo os céus”, como guardiões das florestas e despoluidores dos ares, apesar de termos suportado o insuportável por séculos. Mais do que nunca, precisamos de unificação e pressão por parte da sociedade, suas organizações e movimentos por todo o mundo, numa coalizão pelo clima, pois esta é uma luta de toda humanidade.

Esse texto é dedicado à memória de Paulo Paulino Guajajara, líder indígena e guardião da floresta, brutalmente assassinado por defender a Terra.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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