José Eduardo Fernandes Giraudo

Diplomata, advogado formado pela UFRGS, ex-professor da UnB e do CEUB

Tarso Genro

Ex-Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça e Governador do Rio Grande do Sul. Doutor “honoris causa” da Universidade Federal de Pelotas.

Opinião

A Terceira Via de que fala a imprensa é um blefe

Ela não é o ‘caminho do meio’ entre a direita e a ‘extrema-esquerda’, conforme proposto pelo oportunismo jornalístico

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Muito se tem falado em “Terceira Via” no Brasil. Usada como slogan eleitoral e/ou mero cacoete jornalístico, a expressão passou a sugerir uma vaga “síntese”, um indefinido “meio termo”, ou uma imaginária “equidistância” entre igualmente imaginários “polos” ou “extremos”. Em vez de descrever ou definir um programa de governo ou um conjunto de postulados politico-ideológicos, passou a aplicar-se indistintamente a tudo e ao contrário de tudo, esvaziando-se de sentido. Tudo podendo significar, perdeu todo significado.

A expressão – surgida como conceito de grande importância na história do pensamento democrático contemporâneo – foi apropriada pela maioria dos “comentaristas” da mídia tradicional com o desígnio imediatista de identificar uma alternativa à candidatura Lula, que não fira o bloco social e político conservador que sustenta o bolsonarismo. Na pauta do dia, “forjar” um candidato que, separando-se nominalmente do bolsonarismo em crise, possa apresentar-se como uma “terceira via” (com minúscula aqui) que dê continuidade ao projeto de manutenção e aprofundamento do atual modelo liberal-rentista.

A “Terceira Via” é fórmula política histórica proposta na metade dos anos setenta do século passado, por dirigentes e intelectuais ligados ao Partido Comunista Italiano, no contexto do debate sobre o “Eurocomunismo”. Propugnavam-na nomes como Giorgio Napolitano, que depois veio a ser Presidente da República Italiana, e Pietro Ingrao, então presidente da Câmara dos Deputados.

Ingrao, em 1978, pouco após o assassinato de Aldo Moro, publicou longa entrevista concedida ao jornalista Romano Ledda, sob o título Crisi e Terza Via, na qual propunha, grosso modo, um programa de governo situado “à esquerda” da social-democracia clássica, então dominante no SDP alemão, no PS francês e no Labour britânico, e “à direita” do comunismo também clássico, de matriz soviética e inspiração leninista.

A “Terceira Via” não é o “caminho do meio” entre a direita e a “extrema-esquerda”, conforme proposto pelo oportunismo jornalístico

Duas décadas mais tarde, na Inglaterra, no contexto do debate sobre o New Labour, voltou-se a falar de “Terceira Via”. Desta feita, após vinte anos de neoliberalismo thatcherista e em meio à crise ideológica causada pelo desaparecimento da URSS e pela queda do muro de Berlim, a discussão se colocava sobre como promover o aggiornamento do trabalhismo, situando-o programaticamente “à direita” da social-democracia clássica e “à esquerda” do neoliberalismo.

Os partidários do “novo trabalhismo”, que sustentaram a ascensão de Tony Blair à chefia do governo britânico, pretendiam recriar o trabalhismo (ou a social democracia), apresentando-o como uma alternativa ao neoliberalismo que, no entanto, incorporasse certos elementos deste último, tidos como inescapáveis no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Foi nesse sentido que Anthony Giddens, em Third Way: The Renewal of Social Democracy, de 1998, exatos vinte anos após o livro de Ingrao, teorizou a “Terceira Via”, propondo-a como programa para o que chamou de “centro-esquerda progressista”. Um programa que levasse em conta as grandes transformações da contemporaneidade, como a globalização econômica, o novo patamar tecnológico atingido pelo capitalismo, as metamorfoses da vida privada e a crise ambiental, e apontasse para um “realismo utópico” que evitasse tanto o fundamentalismo de mercado neoliberal quanto os impasses do socialismo de mando. (A experiência com Blair, todavia, resultou num projeto social-liberal ainda mais distante dos projetos históricos da socialdemocracia clássica, e mais próxima da cartilha do que à época se chamou “Consenso de Washington”.)

Assim, se quisermos empregar o conceito de “Terceira Via” de modo minimamente substantivo, teremos de nos perguntar quem apresentou e representou, na história recente brasileira, um programa e/ou uma prática de governo de “centro-esquerda progressista”. E a resposta não poderá ser outra senão o Partido dos Trabalhadores, que integrou as virtudes de um programa de esquerda – considerada a natureza elitista dos partidos tradicionais – com a moderação política necessária para promover um convívio com as exigências da economia global capitalista.

Encontramo-nos aqui muito longe da “Terceira Via” apresentada como descritor aproximativo de uma improvável alternativa eleitoral entre “dois extremos”. Até porque, no Brasil, ao longo de toda a sua história republicana, ou pelo menos após a recente redemocratização, o jogo político-eleitoral nunca se deu em torno de “polos”, ou entre “extremos” (o próprio ex-governador Paulo Maluf se definia de “centro-esquerda”). A rigor, a única eleição presidencial em que concorreu um “extremo” foi a de 2018, na qual se apresentaram um candidato de extrema-direita e um candidato de centro-esquerda.

Situemo-nos, portanto, concretamente, no terreno dos programas e das práticas de governo.

O PT nasceu como partido tipicamente social-democrata de esquerda, a que se somaram setores oriundos do comunismo e do socialismo revolucionário. Passou da defesa de posições marxistas tradicionais àquela de posições mais moderadas, que, ao longo da década de noventa se aproximaram daquelas preconizadas pelos formuladores italianos e britânicos da “Terceira Via”.

Tal reposicionamento permitiu que o partido alargasse sua base social, aceitasse um pluralismo ideológico renovado e se viabilizasse eleitoralmente, possibilitando que se comportasse, por quatorze anos, como um moderno partido de governo, a par de seus congêneres da socialdemocracia europeia, sem prejuízo de manter em seu interior, com relativa tranquilidade, correntes que se definem socialistas de filiação marxista. Daí as dificuldades para o surgimento e a consolidação, no Brasil, de uma “terceira via” alternativa ao PT, que já ocupou e continua ocupando ele próprio, com sucesso, o espaço situado entre a esquerda tradicional e a direita também tradicional.

Isto não implica, obviamente, a impossibilidade de alternativas eleitorais ao Partido dos Trabalhadores que se situem, ideológica e programaticamente, no âmbito da “Terceira Via”, à sua esquerda ou à sua direita. Nesse sentido, bastaria lembrar as candidaturas de Ciro Gomes e de Guilherme Boulos, líderes de correntes políticas importantes, que podem reivindicá-la, embora até agora não apresentem estruturas orgânicas de apoio social e partidário para disputas eleitorais majoritárias em nível federal.

Implica, porém, que se questione e se refute o emprego oportunista e interessado do conceito “Terceira Via” como uma palavra passe-partout, aplicável indistintamente a candidaturas de centro-esquerda e àquelas da direita pura e dura, como a do juiz Sérgio Moro.

A “Terceira Via” não é o “caminho do meio” entre a direita e a “extrema-esquerda”, conforme proposto pelo oportunismo jornalístico. A “extrema-esquerda” nunca foi uma alternativa viável no Brasil: ela é usada (de resto sem qualquer compreensão de suas características históricas revolucionárias) como um útil fantasma, uma figurinha manjada no repertório ideológico da ultradireita atualmente no poder. Para os experts e para os espertos, “centro” é tudo o que se encontra a oeste do terraplanismo QAnon, do terrorismo miliciano, dos ternos verdes de contrabandistas e sonegadores, e dos chapéus e botas de cowboy de desmatadores e etnocidas.

A “Terceira Via” de que falam os telejornais é um blefe, um engodo, uma cortina de fumaça. O “centro-esquerda progressista” é a concreta “Terceira Via” e a única alternativa real à barbárie presente. Pode ainda surgir – e seria desejável que surgisse – uma outra “terceira via”, que, porém, só será digna deste nome se incorporar de modo resoluto não apenas a crítica oportunista ao bolsonarismo e suas “esquisitices”, mas também ao neoliberalismo rentista, incompatível com uma pátria que desejamos mais igual, mais livre, mais solidária e mais soberana.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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