

Opinião
A sociedade de massas e Pablo Marçal
O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a ‘informação’ que não pensa em si mesma


As avaliações exibidas pela mídia sobre os resultados da eleições municipais convergiram para a afirmação do crescimento da direita e centro-direita. No desdobramento dessas avaliações despontou o fenômeno das eleições paulistanas. Daí, emergiram observações que apontam o bom desempenho do candidato Pablo Marçal na periferia e nos bairros de classe média mais modesta.
No livro The Mass Psychology of Fascism, Willem Reich assegura que a mentalidade fascista é a mentalidade do “homenzinho”: escravizado, anseia por autoridade e, ao mesmo tempo, é rebelde. Não é coincidência que todos os ditadores fascistas tenham surgido no meio reacionário do homenzinho.
“Na ordem racional, pode-se esperar que as massas trabalhadoras empobrecidas desenvolvam uma consciência aguda de sua situação social e trabalhem para acabar com sua angústia. Da mesma forma, um trabalhador reduzido à miséria deve se rebelar contra os maus-tratos e dizer a si mesmo: ‘Sou eu quem está fazendo um trabalho social útil. O destino da sociedade depende essencialmente de mim. Portanto, assumirei a responsabilidade pelas tarefas que me são atribuídas‘. Nesse caso, o pensamento do trabalhador (‘consciência’) estaria de acordo com sua situação social. O marxista se referiu a essa atitude como ‘consciência de classe’. Diremos de tal trabalhador que ele está ciente de que está fazendo o trabalho de um especialista, que é animado por uma ‘consciência social’. Ora, a lacuna entre a situação social das massas trabalhadoras e sua consciência dessa situação não leva à melhoria, mas à deterioração de sua condição social. Foram precisamente as massas empobrecidas que ajudaram a instalar o fascismo, ou seja, a reação política mais implacável, no poder.”
Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo abordou as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isso juntou-se a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais”.
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência, sem a supressão das relações de dominação. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cujas estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O fato de que o ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental… Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória.”
A ralé, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.
Hannah Arendt escreveu sobre o totalitarismo no século XX e ressaltou a importância da esfera pública onde se formam os consensos pelo livre debate de ideias. O único remédio contra o mau uso do poder público pelos indivíduos privados está na constituição de um espaço público capaz de avaliar os procedimentos de cada cidadão, submetendo todos os indivíduos à visibilidade. Quando as opiniões são bloqueadas pela intimidação e desqualificação sistemáticas, a meritocracia das ideias sofre um grave dano e o debate democrático escapa às normas da razão e pode ser manipulado.
No estágio atual da sociedade de massas, o controle social despótico dispensa a obviedade dos dólmãs, dos coturnos ou da cadeira do dragão. O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a “informação” que não pensa em si mesma. O propósito da manipulação e da espetacularização disparadas nas redes sociais é tornar os indivíduos incapazes de compreender a natureza perversa da frenética guerra de fatos e versões “construídas” sob o acicate da concorrência para alcançar o “fundo do poço”.
As redes sociais, onde as ideias e as opiniões deveriam trafegar livremente, se transformaram num espaço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.
A “psicologização” utilitarista da existência, diz Elisabeth Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que não compreende. O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios da família, dos costumes e da religião.
A “psicologização utilitarista” foi largamente utilizada pelo candidato Pablo Marçal para angariar a adesão dos eleitores que habitam as regiões menos favorecidas.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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