Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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A sociedade da indiferença

Em meio à brutalidade cotidiana, muitos políticos de esquerda ainda culpam o próprio povo, alegando que ele é passivo demais. Ora, e qual é o papel dos líderes? Esperar uma reação espontânea?

Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
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A sociedade brasileira assiste a atos de violência marcados por uma desumanidade brutal. Isto, a rigor, sempre ocorreu. O massacre de indígenas, a barbárie da escravidão, o assassinato de camponeses, os feminicídios, a matança de negros e pobres. As brutalidades do passado podiam ser pouco conhecidas, encobertas de forma deliberada ou não pela falta dos meios de comunicação de que dispomos hoje. Agora, todos sabem.

Quase todos os dias se tem notícias de massacres em comunidades pobres, principalmente no Rio de Janeiro. Em poucos meses, as polícias do Rio promoveram duas carnificinas horripilantes, em Jacarezinho e na Vila Cruzeiro. O Brasil viu o crime perverso que agentes da Polícia Rodoviária Federal perpetraram contra Genivaldo Santos. Lideranças indígenas são exterminadas por garimpeiros, grileiros e madeireiros.

O rosário de violências, crimes e maldades é interminável. E a indiferença social e política diante dessa guerra desenfreada em que só um lado tem armas e atira é espantosa. Apenas alguns poucos, os mais afetados, protestam. Do que cabe à sociedade civil e aos partidos políticos, não há protestos, não há mobilizações, não há incômodo, não há culpa, não há empatia, não há compaixão, mas sobra covardia.

No Brasil, existem centenas, talvez milhares, de Georges Floyd enterrados no silêncio da dor das famílias e sob a terra do esquecimento e da indiferença. O mais grave de tudo isso é que muitos políticos e dirigentes de partidos, principalmente os de esquerda, culpam o próprio povo, alegando que ele é passivo, que há uma cultura da passividade. Essa imputação de responsabilidade ao povo é um crime político qualificado.

A ação espontânea dos povos ou dos grupos sociais é limitada. Os hebreus não teriam saído do Egito se não fosse Moisés. Os escravos romanos não teriam se rebelado se não fosse Espártaco. A Revolução Francesa não teria acontecido se não fosse liderada por Robespierre, Danton e outros revolucionários. A Revolução Russa não teria ocorrido se não existissem ­Lenin e o partido bolchevique. ­Como estaria a África do Sul sem ­Mandela e o Congresso Nacional Africano? Como estaria a ­China sem Mao e o Exército Vermelho? Que direitos civis teriam os negros americanos sem Martin Luther King? Os exemplos são incontáveis.

Lênin mostrou à exaustão em Que Fazer que nem operários nem ninguém produz mudanças substantivas sem comando político dirigente. Maquiavel foi o primeiro pensador moderno a mostrar a autonomia da política nos processos de mudança. Mao e Gramsci confirmaram essa evidência histórica.

Se existe uma cultura de apatia e indiferença, isso é obra dos líderes políticos, dos dirigentes, dos partidos, das elites em geral. Na verdade, essa cultura é um ardiloso instrumento de dominação dos dirigentes sobre os dirigidos para angariar poder, privilégios e benesses. A comodidade dos gabinetes e dos privilégios é paga com o sofrimento cotidiano do povo e com o sangue e a morte diárias de pobres e inocentes. E muitos políticos ainda se vangloriam pelas migalhas orçamentárias que destinam ao povo pobre. Migalhas custeadas pelo trabalho do próprio povo. A indignação da maioria dos líderes de esquerda é meramente retórica e intelectual. Não é viva, compadecida e dolorosa. É uma indignação de almas mortas, formal.

A maioria dos líderes da esquerda brasileira está encastelada na sua vaidade narcísica, na sua arrogância afetada, na sua presunção de superioridade. Os líderes e os partidos têm recursos, meios e poder de mobilização, mas parecem não confiar no povo. São avessos a uma pedagogia do ativismo, da organização popular.

Os parlamentares não são vistos onde as florestas queimam, onde os indígenas são dizimados, onde os pobres e negros são assassinados, onde as mulheres não têm direitos, onde falta oxigênio, onde se espalha o kit cloroquina, onde a juventude periférica não tem esperanças. Limitam-se ao ritual de convocar ministros nas Casas Legislativas. Sem maiores consequências. E se isso não tem consequências, não passa de uma farsa.

As esquerdas optaram por atuar quase que exclusivamente nas esferas parlamentar e institucional. Isto é necessário, mas insuficiente. Nos confrontos decisivos, se não há organização e mobilização do povo, vem a derrota. Os direitos retroagem. As pálidas mudanças fenecem. A história mostra que somente a força organizada dos povos é capaz de garantir avanços e mudanças nas estruturas sociais, econômicas e políticas. Para isto, é necessário haver líderes comprometidos, competentes e virtuosos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A sociedade da indiferença “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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