Bernard Attal

Opinião

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A sociedade brasileira é cúmplice da violência policial

Nos EUA, os crimes da polícia podem provocar convulsões sociais. No Brasil, a inação é espantosa

Os norte-americanos saem às ruas a cada vítima. Por aqui, só se vê o pranto de familiares
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Neste fim de 2021, ligo para Seu Jurandy para me informar sobre o processo na Justiça contra os policiais indiciados pelo assassinato de seu filho Geovane. O jovem foi levado por uma viatura da Polícia Militar da Bahia em agosto de 2014 e desapareceu. Por uma triste coincidência, na mesma semana, um policial na cidade de Saint Louis, nos EUA, matou o jovem ­Michael Brown, provocando uma onda de protestos que deram notoriedade mundial ao movimento Black Lives Matter.

Duas semanas depois, o corpo de Geovane foi encontrado mutilado no matagal de um parque na periferia de Salvador. A morte de Geovane não gerou, porém, uma onda de protestos no Brasil. No enterro no Semiárido baiano, de onde a família veio há décadas em busca de empregos e de uma vida melhor, somente estavam presentes os parentes, muitos amigos, dois ou três repórteres e nenhum representante do Estado, nenhum formador de opinião, ao contrário do funeral de Michael Brown que juntou políticos, intelectuais e artistas como Spike Lee.

BERNARD ATTAL: Cineasta francês, radicado na Bahia desde 2005, dirigiu curtas-metragens premiados no mundo inteiro. Em 2020, lançou o documentário Sem Descanso, mostrando a saga de uma família baiana para elucidar o assassinato do filho, que havia sido sequestrado e executado por policiais.

Mais uma vez, escuto de Jurandy que o caso não teve avanço algum na Justiça. A defesa dos policiais convocou dezenas de testemunhas e os depoimentos demoram para ser realizados. Em 2014, em menos de um mês, Jurandy elucidou o caso do assassinato de seu filho, numa investigação que recebeu o apoio e ampla cobertura do jornal local O ­Correio. Passados sete anos, a Justiça ainda não conseguiu julgar os policiais envolvidos. Eles respondem pelo crime em liberdade e voltaram a circular em viaturas pelas ruas de Salvador. Durante esse tempo, o pai de Michael Brown recebeu indenização menos de um ano depois da morte do seu filho. E o policial responsável pela asfixia fatal de George Floyd na cidade de Minneapolis, em maio de 2020, está preso purgando uma pena de 22 anos na cadeia.

NOS EUA, OS CRIMES DA POLÍCIA PODEM PROVOCAR CONVULSÕES SOCIAIS. NO BRASIL, A INAÇÃO É ESPANTOSA

Conheci Jurandy quando resolvi fazer um documentário sobre a investigação que ele conduzia para desvendar o caso de seu filho contra a inércia das autoridades públicas. A tranquilidade, a coragem e a teimosia desse homem, artesão especialista em manutenção de pisos, que se sabia encarregado de uma missão, me tocaram profundamente. Decidi que o filme Sem Descanso não seria somente sobre a investigação, iria também acompanhar o drama desse homem ao longo dos anos. Lançamos o filme em 2019 e viajamos pelo mundo para apresentarmos juntos em festivais e universidades a tragédia da violência policial no Brasil. Mesmo sabendo da lentidão da Justiça brasileira, nunca imaginei que sete anos depois do drama os responsáveis ainda não teriam sido julgados.

 

Por ter um passado semelhante em relação à escravidão e por serem nações profundamente divididas pela discriminação racial, o Brasil e os EUA compartilham estatísticas pavorosas sobre a violência policial. Mais de mil homicídios são cometidos por policiais americanos a cada ano. No Brasil, são mais de 6 mil cidadãos mortos em confrontos com a polícia, um número que cresceu vertiginosamente nos últimos dez anos. A grande maioria das vítimas, mais de 78%, é de jovens negros, geralmente moradores das periferias das cidades. Esses números não contemplam os milhares de desaparecidos, cujo destino, nas mãos de policiais em serviço ou fora de dele, continua ignorado. Homicídios decorrentes de intervenção policial acontecem também na Europa e na Ásia, mas em números muito menores.

Seu Jurandy (à dir.) elucidou o assassinato do filho em um mês. Aguarda o julgamento há sete anos

O Brasil é recordista mundial dessa triste realidade que se observa em estados governados tanto pela direita quanto pela esquerda. O Rio de Janeiro tem a maior taxa de letalidade policial do País há tempos, mas a Bahia, governada pelo PT há 15 anos, segue logo depois. São Paulo completa o pódio e o estado do Pará chega na quarta posição, segundo os últimos dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mesmo durante a pandemia da Covid-19, que causou uma redução da circulação de pessoas nas ruas, o número total de vítimas fatais da violência policial aumentou e alcançou 6.416 em 2020, crescimento de 190% comparado a 2013.

SEM DESCANSO Documentário, 78 min. Direção: Bernard Attal. O filme está disponível nas plataformas Now e Vivo Play

Ao contrário do Brasil, o drama da letalidade fardada gerou nos EUA um debate intenso a respeito do papel da polícia. O problema está longe de ser resolvido. Os números de homicídios continuam altos e policiais responsáveis pela morte de um cidadão eventualmente são absolvidos pela Justiça. No entanto, desde o assassinato de Michael Brown, vários estados e municípios americanos equiparam os policiais com câmeras durante o serviço. Nas últimas eleições, muitos candidatos propuseram um defund da polícia, ou seja, repensar e redimensionar o orçamento das suas forças. Aqui, o estado de São Paulo adotou a câmera na farda dos policiais e já se observa uma redução do número de homicídios. A desmilitarização das forças policiais continua, porém, um tema tabu e por pouco, no Pacote Anticrime desenhado por Sergio Moro quando era ministro da Justiça, o Congresso não aprovou a famosa lei de “excludente de ilicitude”, que na prática absolveria policiais de qualquer homicídio cometido em situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Na contramão de uma reflexão sobre a necessidade de reformar a polícia, observa-se que os policiais envolvidos em atos de violência tornam-se mais espertos, vigiando a presença de câmeras de segurança nos lugares de intervenção, por vezes apagando as provas de seus crimes, e até jogando sem piedade as vítimas gravemente feridas na frente de um hospital, em vez de chamar o SAMU. ­Jurandy elucidou a morte de seu filho depois de ter descoberto um vídeo de segurança onde estava registrado o encontro entre Geovane e a viatura policial. É provável que, hoje em dia, os policiais envolvidos seriam mais cautelosos.

O BRASIL É RECORDISTA EM LETALIDADE POLICIAL, DRAMA QUE SE OBSERVA EM ESTADOS GOVERNADOS TANTO PELA DIREITA QUANTO PELA ESQUERDA

No final do documentário, Jurandy pergunta-se se a justiça será feita: “Eles estão aqui para cumprir seu papel”. E conclui que, como cidadão e pai, cumpriu o seu. E cumpriu mesmo, além do que muitos de nós teríamos feito. Mas até hoje, apesar das imagens do vídeo de segurança, apesar do inquérito da Polícia Civil a revelar que Geovane foi assassinado dentro de um quartel da PM com a participação dos policiais indiciados, a Justiça não cumpriu o seu papel. O Estado não procurou Jurandy para propor indenização. Nenhum governante ligou para Jurandy para dizer palavras de conforto. Sete anos sem julgamento dos responsáveis pela morte de seu filho. Sete anos de uma dor prolongada pela inércia das autoridades públicas. O avô de Geovane, Seu Getúlio, que ficava trancado no seu quarto desde o assassinato do neto, faleceu este ano de tristeza e cansaço, sem ter visto a justiça sendo feita.

Por que levou tanto tempo para instalar câmeras nos uniformes de policiais?

Além dos policiais envolvidos, do Estado e da Justiça, será que não somos todos responsáveis por tolerar tantos crimes contra a juventude negra deste ­país? Por mostrar tanta indiferença à dor alheia? ONGs como as Mães de Maio, Reaja ou Justiça Global têm dificuldade em mobilizar a população para que a justiça seja feita e o direito de qualquer cidadão de ir e vir sem medo da polícia seja respeitado. A indignação pública quando Ágata, Micael, Amarildo, Geovane e outros morrem por conta de uma intervenção policial não dura mais que alguns dias. Devemos ter consciência que esse silêncio tem seu preço, fomenta cada vez mais violência e um dia contribuiu para eleger na Presidência um Jair Bolsonaro.

Certa vez, o escritor afro-americano James Baldwin escreveu que “as pessoas que fecham os olhos para a realidade simplesmente cavam sua própria destruição, e qualquer um que insiste em permanecer em estado de inocência muito tempo depois de essa inocência estar morta se transforma em um monstro”. Sabemos que a destruição começou, mas ainda é reversível. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1189 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: CHRIS JUHN/SPUTNIK/AFP, MARCOS PORTO/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO E REDES SOCIAIS – PMSP/GOVSP E LIVRE FILMES/SANTA LUZIA FILMES

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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