Opinião

A sina de Moro é ser descartado

Com efeito, há similitudes entre a Mãos Limpas e a Lava Jato. Em primeiro lugar, porque na gênese comum está a política

O ex-juiz Sergio Moro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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“A maior maldade de todos os tempos, a mais cruel, foi inventar que o sofrimento está para o bem assim como o prazer está para o mal.”
Carla Madeira.

O medo, o terror são parte de um projeto político, de uma ideologia ou religião.

No entanto, disfarçam-se em defensores da liberdade, autodenominando-se “liberais” ou “neoliberais”, quando o mais adequado seria “cativos, encarceradores, detidos”, pois é isso que geram em si e na maioria das pessoas, tolhendo liberdade de ver, julgar e agir. Como já dissera Pier Paolo Pasolini, “estamos todos em perigo”, dominados e também dominadores.

O medo, em primeiro lugar, instila a desconfiança, que dificulta a união e a reunião.

Dessa forma, provoca rachaduras na liberdade, edifício complexo que requer cuidadosa construção.

Sem segurança, não há liberdade. Mas como decidir com segurança, quando o terror nos impele apenas ao retrocesso, tanto no plano individual quanto no coletivo?

No dia 23 de maio corrente, a Itália enfrentará o aniversário de 30 anos da tragédia de Capaci, que foi o 11 de setembro italiano: o brutal assassinato do juiz antimáfia Giovanni Falcone, de sua esposa Francesca Morvillo – também ela juíza, e três policiais guarda-costas: Antonio Montinaro, Rocco Di Cillo e Vito Schifanni, em um atentado que explodiu todo um trecho da autoestrada Punta Raisi-Palermo, em que foram detonados mais de 500 quilos de explosivos.

Os dados acima foram retirados do livro “Don Vito” (editora Feltrinelli), escrito pelo jornalista Francesco La Licata e o filho de Vito Ciancimino, Massimo Ciancimino (desde então sob proteção policial), com a colaboração do outro filho, Giovanni Ciancimino.

Trata-se da biografia de Vito Ciancimino, político siciliano que dominou a cena regional no pós-guerra, sendo ele próprio um mafioso.

A obra permite visualizar como a estratégia do terror adotada pela máfia, ao sentir expostas as bases dela, iria determinar as escolhas políticas na Itália e não apenas.

Marx dizia que a História se repetia, primeiro como tragédia, depois como farsa.

Também na comparação entre as operações Mãos Limpas e Lava Jato aquela afirmação do natural de Trier ajusta-se precisamente.

Na Itália, os juízes sicilianos iniciaram a devassa dos negócios mafiosos, principalmente no campo da construção civil, campo em que operavam em conluio com os governos da Democracia-Cristã (sim, o nome de Deus foi manipulado lá nos moldes como é feito pelos mafiosos daqui, que tomam o nome de milicianos).

É dessa legitimidade que a Operação Lava Jato tentou apropriar-se, posteriormente, para os fins escusos que o Supremo Tribunal Federal iria desmascarar, anos mais tarde, no que fora flagrante golpe de estado contra o país.

Com efeito, há similitudes entre ambas as Operações. Em primeiro lugar, porque na gênese comum está a política.

Na Itália, a Operação Mãos Limpas, instaurada em Milão (Norte da Itália) recolheu sua legitimidade dos maxiprocessos que o juiz Giovanni Falcone instaurara no Sul, na Sicília; em um único maxiprocesso, 466 réus de delitos mafiosos foram julgados.

Para a máfia, essa ousadia foi insuportável, pois poderia levar à própria extinção dela.

Naqueles processos, todas as vinculações entre máfia e agentes do estado foram claramente expostas, ficando evidente também a participação dos serviços secretos desviados e de parte da Maçonaria, setores que, no Brasil, também conspiraram para o golpe de estado de 2016.

Ao contrário da Mãos Limpas, porém, a Lava Jato acusou, julgou e prendeu um ex-presidente da República, sem qualquer prova, com o fim exclusivo de impedir que vencesse as eleições presidenciais de 2018.

Convém notar as origens mafiosas de Vito Ciancimino, as quais remontam ao pai dele, que iniciara empresa de transportes, utilizando irregularmente caminhão do exército estadunidense, após a invasão da ilha pelas tropas aliadas.

Esse fato pessoal não destoa das origens e expansão da máfia: o apoio do imperialismo ao crime organizado, para obter ganhos políticos, da mesma forma como operou aqui, pela Lava Jato.

Convém notar que seriam essas escolhas ideológicas que iriam determinar a vida política, italiana e brasileira, por décadas.

Retrocedendo à década de 70, ao tentar unir o dividido país, o primeiro-ministro Aldo Moro, propôs “compromisso histórico” entre a Democracia-Cristã (DC) e os partidos de esquerda, principalmente o então poderoso Partido Comunista Italiano (PCI, o maior do Ocidente). Moro, porém, seria sequestrado e morto, em maio de 1978. O recado seria claro: seu corpo deixado em um porta-malas, entre as sedes da DC e do PCI, em pleno centro de Roma.

Ao império e às forças mafiosas, em nada interessava aquela aliança, que teria dado um novo rumo de justiça, paz e prosperidade à Itália e ao mundo.

No livro em apreço, aprendemos ainda que Vito Ciancimino se dispusera a descobrir o paradeiro de Moro e libertá-lo, com o auxílio de contatos na máfia. Entretanto, foi desestimulado pela própria DC, pois o preferia morto. O próprio Aldo Moro percebera o desfecho da tragédia, como se soube em 1992, ao serem descobertas as cartas dele, escritas no cativeiro e só encontradas duas décadas depois, em concomitância com a Operação Mãos Limpas e na mesma cidade, Milão.

Em um último espelhismo que confirma aquele aforismo de Marx, na Itália Moro, Aldo, foi um herói, vítima de um complô que resultou em tragédia política; no Brasil, o homônimo, sempre o soubemos mero farsante; ambos, objetos da História mundial, mas um entra como sujeito, o outro, como objeto, cuja sina – qual a de Sísifo – é ser, a cada novo dia, descartado.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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