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A sede do Legislativo

O Congresso Nacional não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Constituição, que compete ao Supremo

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Presidente do Senado Federal, senador Davi Alcolumbre (União-AP), e o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), concedem entrevista. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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A crise do Estado de Direito legalista, bem como o esgotamento do paradigma legal como única “tecnologia disciplinar”, conforme expressão de Michel ­Foucault, abriu caminho ao surgimento do que podemos chamar, vulgarmente, de Estado constitucional. Este, por sua vez, implicou o rompimento do modelo de “democracia radical”, exacerbadora da vontade majoritária.

Do mesmo modo, as ideias de supremacia e força normativa à Constituição geraram a necessidade de um órgão para regular o sistema, a jurisdição constitucional, destinada a reconhecer as fontes normativas e verificar a adequação dos seus produtos. Por essa razão, inclusive, reputa-se à Justiça constitucional a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.

A conformação jurídico-constitucional do poder democrático e a juridicização da organização do poder político impõem que o poder político, especialmente o capitaneado pelo Legislativo, seja exercido conforme o figurino do Estado constitucional.

Realizadas as referidas premissas, discussões relacionadas à concessão de anistia pelos atos golpistas e, mais recentemente, a Proposta de Emenda Constitucional conhecida popularmente como “PEC da Blindagem” nos levam a alertar que não cabe ao Legislativo a determinação dos limites, bem como a extensão e o alcance, da nossa Constituição, substituindo o Supremo Tribunal Federal em seu papel de intérprete final e guardião. Ademais, a noção mais elementar de república pressupõe responsabilidade no trato da coisa pública.

Se, de um lado, a realização do Estado constitucional implica a preservação da esfera de livre decisão política do legislador, ele obriga a conformidade com a Constituição. É no espaço de tensão entre esses dois princípios que a análise da constitucionalidade da anistia deve ocorrer.

Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a interpretação última da ordem jurídica. Em países como os latino-americanos, caracterizados por Constituições analíticas, diversas decisões sobre da vida em comunidade e dos comportamentos humanos ocorrem no âmbito da jurisdição constitucional.

É a primeira vez na nossa história em que militares, ministros, ex-presidente da República e outros servidores públicos da alta administração do Estado foram condenados por tentativa de golpe de Estado. Até então, prevaleceram impunidade, cegueira deliberada e anistia.

Sem que haja margem para tergiversações ou de suposta necessidade de pacificação, a finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente punir: precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade brasileira rechaça ataques violentos à Constituição e à democracia.

Se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra as instituições democráticas.

Subvertendo a lógica constitucional, o Congresso Nacional não pode outorgar a si próprio a condição de guardião máximo da Constituição. Não podemos admitir a tentativa de deslegitimação do Judiciário e de esvaziamento do seu produto decisório por meio de uma pretendida anistia, sob pena de esvaziamento do seu compromisso irrenunciável com a democracia e com o Estado de Direito. Em suas condições e possibilidades, o pacto constitucional rejeita qualquer pretensão dessa natureza, mesmo que por iniciativa majoritária.

Jon Elster assinala que a Constituição, na democracia, atua como mecanismo de autolimitação e de pré-comprometimento aos órgãos ordinários de decisão política. Assim, é preciso que recordemos a releitura do autor de uma passagem da Odisseia de Homero, na qual Ulisses determina que o amarrem ao mastro de uma embarcação para não sucumbir ao canto das sereias.

Para o autor, a Constituição, nas democracias, possui finalidade similar às referidas amarras, quando se destina a proteger determinados valores em face das inconsistências temporais e de paixões momentâneas dos órgãos do Estado e políticos. A anistia e a “PEC da Blindagem” em pauta são paixões momentâneas que, mesmo com grande apoio parlamentar, não deve prevalecer em face do nosso pacto intergeracional. •

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A sede do Legislativo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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