

Opinião
A saúde que queremos
A ressignificação do binômio saúde-doença tem implicações objetivas e práticas na vida das pessoas e nas relações sociais


Tende-se a definir saúde e doença por contraposição. Saúde é a ausência de doença. Doença é quando não se tem saúde. Trata-se, porém, de uma visão simplista, que não dá conta da complexidade do tema.
Existem modelos, como o biomédico, hegemônico no meio científico, que reduzem a doença à incapacidade dos mecanismos de adaptação de um organismo para neutralizar os estímulos ou solicitações a que está sujeito, resultando em transtorno da função ou estrutura de qualquer parte, órgão ou sistema.
Em 1946, no contexto de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial e sob inspiração da social-democracia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) formulou um novo conceito, o mais vago e subjetivo possível: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.
Essa definição, de difícil expressão prática, teve efeitos positivos ao destacar a dimensão mental e social dos seres humanos, aspecto até então negligenciado. Por outro lado, a extrapolação do seu significado, confundindo mal-estar mental e social com doença, tem levado à medicalização da sociedade.
O que isso significa? Que a medicina passou a normatizar a vida, estabelecendo parâmetros do “bom viver”, valorizando a responsabilidade individual na manutenção da saúde e, de alguma forma, obscurecendo o peso que características mais gerais da sociedade têm sobre o nosso modo de adoecer e morrer.
Dois modelos relativos à saúde passam a ser disputados. Um deles trata a saúde como um bem de consumo, com valor de uso e de troca definidos. Saúde e doença constituem-se em mercadoria, cabendo ao mercado prover as necessidades pela lei da oferta e da procura. Quem pode, paga por atendimento. Quem não pode, é tratado como indigente.
O outro modelo, adotado por países influenciados pelos princípios da social-democracia, do socialismo ou pela ideia de que é necessário garantir a reprodução da força de trabalho e atenuar as pressões sociais mediante a concessão de “políticas públicas”, lida com a saúde como um direito social – com maior ou menor abrangência, a depender dos contextos.
O Brasil, após intensa mobilização social, estabeleceu na Constituição Federal que a “saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Para que se tenha saúde nessa perspectiva ampliada são necessárias condições dignas de trabalho, renda, moradia, saneamento, proteção ao meio ambiente, alimentação e nutrição, educação, liberdade, acesso e posse da terra, transporte, lazer e garantia de acesso às ações e serviços de saúde. A saúde passa, assim, a ser um direito social universal que se confunde com o direito à vida e que deve ser assegurado pelo Estado.
Certas doenças dominaram períodos específicos da história. Determinaram a sorte, o apogeu ou a derrocada de certas culturas. Influenciaram até mesmo a política, a cultura, a arte e a arquitetura. Abreviaram carreiras de gênios e personalidades que poderiam dar outros rumos ou sentidos à história da Humanidade. Tomem-se os exemplos da peste, no século XIV; da tuberculose, no século XIX; da gripe espanhola, no início do século XX; da Aids, nas décadas de 1980 e 1990; e, mais recentemente, a Covid-19.
É inegável que as chances de adoecer e morrer são mensuráveis já no momento da gestação – a depender do nível de escolaridade e renda das mães. Nações, classes sociais e grupos de indivíduos são atingidos pelas doenças de forma distinta e perversa.
Rever o significado do binômio saúde-doença tem implicações objetivas e práticas na vida das pessoas. A partir de um conceito mais amplo, a atenção à saúde passa a ser entendida como um instrumento capaz de possibilitar às pessoas o uso e gozo de seu potencial físico e mental.
E se nenhum conceito é totalmente satisfatório para explicar a complexidade do processo saúde-doença, talvez seja necessário alargar a discussão. Daí porque prefiro tratar a saúde e a doença como um binômio, analisando-o, como dizia Giovanni Berlinguer, em múltiplas possibilidades: enquanto sofrimento, diferenças e anomalias, perigos, sinais ou oportunidades advindas dos estímulos que a enfermidade pode desencadear. Saúde e doença dizem respeito ao indivíduo, mas também às relações sociais e à própria configuração da sociedade. •
Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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