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Opinião

A saga da esquerda

Mesmo ligada aos pontos culminantes, a prosa sobre 1964 não é escassa nem de pouca qualidade. E está longe de acabar

fernando moraes||Literatura de Esquerda
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A prosa literária referente a 1964 traça um arco contínuo com aquela provocada pelo AI-5 de 1968, e vai além, transformando-se à medida que a ditadura enrijecia. Tal prosa agrupa-se em três vertentes: o romance, o memorialismo e a biografia. A bem da síntese, os comentários a seguir elegem apenas as obras que constituem os pontos altos mais representativos.

O romance dos veteranos
Alguns de nossos mais renomados ficcionistas fizeram questão de deixar claro que não se alinhavam com o regime discricionário. Farto e de boa qualidade é o romance em resposta ao golpe, mas que a falta de liberdade, arrastando-se por 21 anos, acabaria desfibrando.

De imediato, em 1967, surgiram Quarup, de Antonio Callado, e Pessach – A Travessia, de Carlos Heitor Cony, sofregamente acolhidos pelos leitores traumatizados: um golpe militar implicava um tremendo retrocesso, burlando as esperanças atiçadas pelas eras Kubitschek e Jango Goulart. Não por coincidência, ambos terminam com seus heróis partindo para a guerrilha.

Pessach é, sem disfarces, o itinerário da aquisição de uma consciência política, que germinaria na decisão de engrossar as fileiras da luta armada, por alguém neutro e bem aconchegado ao conforto de seu casulo.

Quanto à obra de Callado, constituiria uma sequência de romances registrando as metamorfoses do jugo fardado, sempre do ponto de vista de quem o sofre na carne. A Quarup se sucederiam mais três. Bar Don Juan (1971) é povoado pela chamada “esquerda festiva”, que começava a pegar em armas.

Reflexos do Baile (1976) já penetra pela repressão, de uma brutalidade até então inédita no 
País, e pelo terror de Estado. E, finalmente, Sempreviva (1981) trata de um guerrilheiro regressando do exílio. Assim se fecha o ciclo, que devemos àquele que se tornou o cronista da esquerda no período, dando seu testemunho de quem comungava desses ideais. Destaca-se Quarup, lido e relido, editado e reeditado, nunca desgastando sua aura de obra-prima.

Ainda nessa fase, Lygia Fagundes Telles escreve o romance As Meninas (1973), em que mostra o arrocho a que os tiranos do momento submetem os estudantes, gerando indignação e revolta. Uma delas é militante política, trazendo à discussão a coragem, a generosidade e os riscos inerentes a uma tal opção.

Já rezando pela cartilha alegórica, na craveira do “realismo mágico”, então em voga na América hispânica, outros veteranos procederiam a seu ajuste de contas.

Era por esse rumo que Erico Verissimo enveredaria. Em Incidente em Antares (1971), uma greve de coveiros resulta em defuntos insepultos, mortos-vivos a xeretar a vida dos cidadãos, revelando os “podres” que eles querem esconder. Fala de repressão, tortura, greve, anticomunismo.

Literatura de Esquerda

Aparentado a este, Os Tambores Silenciosos (1977), de Josué Guimarães, relata como o prefeito de um lugarejo aproveita a Semana da Pátria para proibir jornais e rádios, espancar estudantes e exterminar mendigos, tudo a bem da paz social.

Não destoando da linha, mas ainda mais renitentes à descodificação, postam-se os livros de José J. Veiga. Sobretudo três deles – repare-se nas datas: A Hora dos Ruminantes (1966), A Máquina Extraviada (1968) e Sombras dos Reis Barbudos (1972). Em todos paira, na clausura de um universo totalitário, uma atmosfera de pesadelo.

Em resumo, como já não mais era 
viável falar diretamente do que se passava, desdobra-se uma literatura que revela a repressão e a censura justamente nas tramoias para driblá-las. Tal estratégia tem por armas a elipse (o não dito) e a metáfora (o dito indireto ou figurado). Estamos no reino da alegoria, do cifrado, do simbolismo, do surrealismo, da colagem e da montagem, da linguagem críptica, dos personagens à clef, das tergiversações e negaceios.

Rejeitado por vários editores, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, acabaria saindo na Itália, em 1974, e só um ano depois no Brasil, para ser apreendido e proibido em todo o território nacional. Cacos de prosa experimental compõem um imenso mural em forma de mosaico, com paródias e pastiches que denunciam as violações dos direitos civis, o amordaçamento das opiniões, a mídia enganando todos, um país onde não se respirava.

Outro foi A Festa (1976), de Ivan Ângelo, contestando o “milagre brasileiro” numa voz estrangulada pelo acirramento do obscurantismo. Uma festa invadida por baderneiros fascistas para semear a pancadaria acaba apocalipticamente em incêndio; fora, retirantes nordestinos são massacrados pela polícia. O tamanho do trauma pode ser avaliado pela declaração do autor de que passou os dez anos subsequentes ao golpe sem conseguir escrever.

No mesmo ano saiu Quatro Olhos (1976), de Renato Pompeu, em que o protagonista, preso e torturado como o autor, vai parar num manicômio, à cata de um manuscrito que se extraviou e do qual rememora frangalhos.

Escrito no exílio e logo best seller é Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, romance que introduz os índios na discussão dos destinos do País. Ministro da Educação do governo Jango Goulart e seu chefe de gabinete e reitor da Universidade de Brasília, que criara conforme projeto revolucionário, fora cassado em 1964 e escapara por um triz à sanha dos novos senhores.

Os romances dessa saga, numerosos e relevantes, aos poucos cederam o passo ao memorialismo e às biografias.

O memorialismo dos jovens
Ao contrário do romance, o memorialismo não coube aos veteranos e custaria a aparecer, tanto é que há memórias surgindo até hoje, meio século depois.

O motivo não foi o tempo necessário para armazenar e filtrar lembranças, caso de Pedro Nava, grande memorialista à moda tradicional que aos 60 anos começaria a publicar as suas, à época. Não: de repente, houve essa curiosa (e terrível) novidade, a de que o gênero passara a ser obra de jovens, que antes dos 30 anos já se podiam entregar a reminiscências dolorosas de clandestinidade, prisão, tortura, desterro.

Renato Tapajós, da luta armada, viu-se trancafiado na cadeia por cinco anos. Publicou Em Câmara Lenta (1977) e foi preso de novo, por causa do livro, que não tinha sido nem censurado nem proibido, mas que o seria após a segunda prisão.

Carro-chefe foi O Que É Isso, Companheiro?, de Fernando Gabeira  (1979), marcando a Abertura, perenizado porque se tornou best seller, relato em primeira mão de um membro da equipe que realizara uma proeza espetacular: o sequestro de um embaixador norte-americano.

Em seguida, surgiu o de Alfredo 
Sirkis, Os Carbonários(1980), em que o autor conta como começou seu ativismo contra as fardas ainda adolescente de colégio, dali passando à guerrilha urbana e participando de vários sequestros de diplomatas, sempre para trocar por presos políticos. Eram garotos escrevendo memórias, ao contrário da lição da História de que este é um gênero típico da velhice.

Tão ou mais jovem ainda é Marcelo Rubens Paiva, autor de Feliz Ano Velho (1982). Estreando aos 23 anos, o autor do livro mais vendido da década, com dezenas de edições, é filho do deputado federal Rubens Paiva, cassado e exilado em 1964, um dos mais célebres “desaparecidos” do regime.

Um após outro, com o passar do tempo muitos militantes foram publicando livros. O memorialismo se expandiria, forneceria húmus para uma literatura carcerária, e não cessou até hoje: pela pujança e pelo interesse, é fenômeno único em nosso panorama.

Biografias
Para remontarmos ao início do biografismo pós-golpe, temos de levar em conta, paradoxalmente, um livro que não era biografia: A Ilha (1976), de Fernando Morais. Dentro da saga da esquerda, sua importância naquela hora desafia avaliação. Foi uma lufada de ar fresco e de esperança: ter acesso a um extenso estudo sobre Cuba, então assunto tabu, e ver que era possível criar um país socialista na América Latina. E que nem tudo era retrocesso, nem tudo era a mortalha do despotismo que gangrenava o continente.

Mas o autor não se fez esperar e logo produziria uma biografia propriamente dita que seria também um marco histórico: Olga (1985). Arrostando os riscos, dedicou-se a pesquisar e a resgatar uma vida raramente mencionada até então, e a cuja trajetória, de tão devastadora que era, só se aludia aos sussurros.

A protagonista era uma judia comunista, mulher de Luiz Carlos Prestes, dirigente do Partido Comunista, que, grávida, Vargas entregara a Hitler quando era óbvio que seu destino seria o campo de concentração e o assassinato na câmara de gás. Trancava-se a sete chaves uma história de ignomínia, passada nos altos escalões, que contradiz um de nossos mais arraigados mitos – o da índole cordial do povo brasileiro, sempre generoso e pronto a conciliar. Depois, também deixaria as sombras do olvido outra militante, Patrícia Galvão, a Pagu, contemporânea de Olga.

Mais tarde, tendo no golpe sua causa motora, surgiria a biografia de um membro da resistência que pegara em armas: Iara (1991), de Judith Lieblich Patarra. Mais que uma biografia, é a história de toda uma geração da Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia – onde tanto Iara Iavelberg quanto a autora se formaram – bombardeada e incendiada pela direita, foco do movimento estudantil de onde tantos saíram para a guerrilha.

Depois, muitas mais surgiriam, entre elas as de Carlos Marighella (que acaba de ganhar o prêmio Casa de Las Américas), Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Lamarca, Pedro Pomar, Mário Alves, Luiz Carlos Prestes, Wladimir Herzog, Gregório Bezerra, Eduardo Leite, o Bacuri, Helenira Resende e João Amazonas. Outras estão sendo escritas neste momento. E estratégicas por devassarem a truculência das masmorras e das almas tenebrosas, as do Cabo Anselmo e do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Exemplares na fortaleza que demonstraram ante as imposições do arbítrio e insuperáveis na luta mesmo que desarmada são as histórias de vida de D. Helder Câmara, Sobral Pinto e D. Paulo Evaristo Arns – esta uma autobiografia.

Talvez apenas tangenciando o âmbito da literatura, mas com certeza obras clássicas por efetuarem o mais completo balanço da saga da esquerda pós-1964, exigem menção dois verdadeiros tratados, que são a tetralogia de Elio Gaspari historiando os governos militares (publicada entre 2002 e 2004) e Combate nas Trevas (1987), de Jacob Gorender, elaborando a crônica dos subterrâneos guerrilheiros. Embora nem o assunto nem o período fossem propícios a esse tipo de pesquisa, constituem tratados na melhor acepção do termo, ou seja, reflexões aprofundadas a partir de toneladas de documentação – mesmo sendo tal documentação ultrassecreta, perigosa de manuseio por sua natureza, proibida e rara.

Em suma, não podemos reclamar: a saga, mesmo quando nos atemos apenas aos pontos culminantes, nem é escassa nem de pouca qualidade. E está longe de se encerrar, porque ainda há arquivos por abrir e muita verdade por vir à luz, para tornar-se patrimônio de todos os cidadãos.

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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