Opinião

A revolução interior será tão ou mais bela do que a exterior

O trabalho de reconstrução será primeiro de afetos, por isso longo e dolorido, ainda assim belo, como o sol que brilha depois da chuva

Foto: Fine Photographics/Unsplash
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“Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”
– Heráclito

Estou lendo o excelente livro “Mitologias Arquetípicas”, de Gustavo Barcellos, edição da Vozes. A obra tem ensinamentos muito interessantes, como este trecho:

“…na mentalidade grega o bom e o belo estão juntos. Só é bom o que também for belo. Belo no sentido de trazer uma ordem, um cosmos. O que é belo é o que está ordenado, o que tem um lugar, o que é estético – estético no sentido de estar desperto, não estar “an-estético”, anestesiado. O estético é o que tem força para nos despertar. O belo desperta. A alma se encaminha naturalmente em direção ao belo: é o que dizem os antigos filósofos neoplatônicos sobre a alma.”

O carnaval confirma essa percepção: nele, as fantasias são vividas. Nada mais utópico, corajoso e político, portanto. Somos chamados ao otimismo da realização dos sonhos, de forma cativante, motivadora e estimulante. Para isso, as repressões devem ser domadas: Ares, o deus da guerra, deve retomar seu lugar de parte, não regente da polis.

Observa Barcellos nesse sentido:

“Ares não é um deus político. O ensinamento é que o militarismo não serve para administrar a cidade. Arquetipicamente, é o civil que deve controlar o militar, não o contrário.

Ao citar Walter Otto, complementa:

“Ele é o espírito da praga, da fúria, da sanguinolência… Seu elemento é a luta de morte… luta mortífera… cega ferocidade.”

Encontramos aqui uma polaridade: um país marcado pela chaga da escravidão, que consegue sonhar e viver suas utopias como nenhum outro. Seria a nossa cultura multissecular de violência que nos levaria a aceitar a militarização do país, ontem e hoje, mas não sempre? Poderemos nos libertar de Ares se o encararmos em nossa cultura e, consequentemente, dentro de cada um de nós?

Barcellos nos dá mais uma dica, ao citar Ginete Paris:

“O medo de amar é tão comum quanto o medo de lutar.”

Na voz de Elis Regina, o medo de amar era “o medo de ter de escolher a todo momento, com acerto e precisão, a melhor direção”, belíssima letra de João Bosco e Aldir Blanc.

Seria essa uma das razões da nossa tendência atávica à submissão pelo medo? Explicaria a apatia, que na verdade é terror – medo profundo – à violência de um país que discrimina e mata, como nenhum outro, negros, mulheres, LGBTS e pobres? Nossa saída da ditadura não implicou primeiro em uma revolução interna, já que a externa fora estraçalhada pelos monstros do império e seus representantes locais?

Naquela quadra, percebemos e vivemos como nesta citação de JR Ribeiro, no livro de Barcellos:

“As características mais cerebrais da guerra, como por exemplo a estratégia, a habilidade e a violência discriminada e eficaz, não eram representadas por Ares, mas pela deusa Atena, que simbolizava justamente a guerra organizada e ordenada, empreendida apenas em defesa da polis.”

Barcellos complementa:

“Atena é a cabeça, Ares é o corpo.”

Na presente quadra, caberá contextualizar a encíclica “Mater et Magistra”, de São João XXIII, dando-lhe atualidade: escutar, julgar e agir, terão de ser os parâmetros das forças democráticas no Brasil.

Brilhantemente, o autor complementa:

“…o contrário do amor não é o ódio (pois o ódio é uma forma ainda mais intensa de amar), mas o poder, o contrário da guerra não é a paz, mas a beleza.”

Acredito que haja informações muito importantes nessa afirmação, que nos permitem entender porque pessoas claramente insatisfeitas com sua sexualidade chegaram ao poder no Brasil. Ao lado disso, ilustra nossa dificuldade em lidar com conflitos, pois cremos ser a paz o contrário da guerra. Redimimos essa incompreensão e a sublimamos na beleza do carnaval, nossa guerra de confetes.

Nesse sentido, parece ilustrativo que o ocupante ilegítimo do Alvorada durma com uma arma na cabeceira. Com toda a segurança de que dispõe, o gesto só pode ser entendido como medo a fantasma, talvez negra, lésbica, pobre e de esquerda, quiçá fora vereadora no Rio de Janeiro. Vale lembrar que a prefeita de Barcelona já previra que seria ela – a imagem da vereadora – que tiraria os milicianos do poder, todos.

Com certeza, o golpista não leu “Macbeth”, peça – de muitas letras – de William Shakespeare, que retrata com a costumeira perfeição do Bardo, o medo e o terror que atingem os assassinos, que deles – como a mancha de sangue – nunca mais se separam.

Se algo há de bom em meio ao caos, será a retomada da seiva vital pelas raízes, como vimos na semana que se encerra, em carta assinada por 20 governadores, que manifestaram espanto pelo comportamento divisivo do usurpador do trono, o que faz recordar outra peça magnífica, “Hamlet”, também de Willian Shakespeare.

Ainda em chave otimista, de carnaval, pensemos em nossa capacidade de resiliência e nas maravilhas que o otimismo consegue extrair dos nossos poços de tristezas e desalento. A revolução interior precede a exterior e esta será tão ou mais bela do que for aquela. Por fim, lembremos que o trabalho de reconstrução será primeiro de afetos, por isso longo e dolorido, ainda assim belo, como o sol que brilha depois da chuva, parafraseando, uma última vez, o sábio bardo inglês.

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