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Opinião

A responsabilidade histórica da Volkswagen no Brasil de Bolsonaro

Teria a empresa simpatia pelo governo que despreza os direitos humanos no Brasil?

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“Como podemos apoiar o recomeço no Brasil?”, questionou Andreas Renschler, membro da diretoria da Volkswagen AG, logo após a eleição de Jair Bolsonaro num artigo de opinião. No texto, o executivo expressou sua confiança nas chances de sucesso da política que saiu vitoriosa das urnas. Desde então, a direção da filial brasileira da montadora alemã vem contribuindo com empenho para melhorar a imagem dos vencedores da eleição.

Em 7 de março, por exemplo, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, posou de governante pró-negócios ao lado do presidente e CEO da Volkswagen Caminhões e Ônibus, Roberto Cortes. Esse encontro gerou constrangimento na Alemanha e chegou a ser criticado pela Associação de Acionistas Críticos num comunicado. Witzel glorifica crimes e a cultura da violência e, por essas posições anticonstitucionais, muito provavelmente não seria sequer considerado elegível na Alemanha. Mesmo assim, no início de novembro, o presidente e CEO da Volkswagen América Latina, Pablo Di Si, saudou, com palavras surpreendentemente imprudentes, a chegada da direita radical ao poder. Na imprensa argentina, ele avaliou a eleição de Bolsonaro como uma chance para a economia e motivo para o otimismo.

Essas declarações levantam a questão: teria a Volkswagen simpatia pelo governo que despreza os direitos humanos no Brasil? Diante das posições demonstradas pelos representantes locais da montadora se pode, ao menos, falar em uma neutralidade política mal compreendida.

A expressão “neutralidade política mal compreendida” foi empregada pelo historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, para descrever o posicionamento da diretoria da Volkswagen em Wolfsburg durante a ditadura militar no Brasil (1964-1984). Em 2016, devido a fortes acusações, Kopper foi contratado pela montadora para esclarecer possíveis abusos praticados pela filial brasileira durante esse período autoritário. Tinha sido descoberto que seguranças da fábrica de São Bernardo do Campo maltrataram operários de esquerda, os entregaram ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro de São Paulo, e, desta maneira, se tornaram cúmplices em casos de tortura e prisão. Além disso, entre 1973 e 1986, a montadora possuiu uma fazenda de gado de 140 mil hectares no Pará, onde empresas terceirizadas contratadas para desmatarem a região exploraram mão-de-obra em condições de trabalho forçado.

O conceito de trabalho forçado provoca em outro contexto histórico lembranças dolorosas na Volkswagen. Entre 1939 e 1944, milhares de prisioneiros de guerra, assim como presos de campos de concentração, foram explorados na produção de armamentos na fábrica da montadora em Wolfsburg. Em 1986, a Volks foi uma das primeiras grandes empresas alemãs a solicitar um estudo histórico independente sobre esse passado sombrio. Seguindo a recomendação do historiador Hans Mommsen, a diretoria da empresa criou em 1991 um fundo de 12 milhões de marcos alemão para apoiar projetos culturais e sociais nos países de origem dos trabalhadores forçados daquele período. Depois da publicação do livro resultante do estudo, A Fábrica da Volkswagen e seu trabalho no Terceiro Reich, em 1996, surgiram várias iniciativas de homenagens às vítimas. Sob a coordenação do historiador Manfred Grieger, que juntamente com Mommsen investigou o passado da montadora, a Volks fundou ainda o departamento de Comunicação Histórica, cujo trabalho se tornou norma para a mídia e ciência.

Claro que todos sabiam que, por trás da decisão de ceder ao desejo público de um esclarecimento histórico, havia interesses da empresa. Com a pesquisa e o debate sobre sua própria história, a Volks evitou possíveis revelações de terceiros que poderiam ser prejudiciais ao grupo e assim afastou também a escandalização. Além disso, a consolidação do departamento de Comunicação Histórica criou uma cultura de marketing histórico que se tornou parte da promoção de produtos. Ao lado de obras como a coleção notável de relatos de trabalhadores forçados judeus durante a Segunda Guerra Mundial, publicada em 2005, foram lançados também livros com fotografias reluzentes de carros antigos que refletem a narrativa clássica de uma história de sucesso do pós-guerra. Neste contexto, a ascensão da Volks a uma das maiores multinacionais do mundo foi apresentada como uma consequência lógica do milagre econômico alemão do pós-guerra. As condições políticas destes anos, no entanto, quase nunca foram questionadas – diferentemente do passado nazista. Essa conquista inclui, porém, o sucesso econômico em países controlados por regimes autoritários, como o Brasil, onde a Volks está presente desde a década de 1950.

Armada com fuzis, a PM acompanha a movimentação dos grevistas na porta da Volks em 1979 (Foto: Jesus Carlos)

Somente em 2014, a Volkswagen começou a prestar a atenção na sua história em território brasileiro. Naquele ano, num relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), nomeada pela então presidente Dilma Rousseff, surgiu a suspeita de que a Volks participou da perseguição política de sindicalistas durante a ditadura. No ano seguinte, doze supostas vítimas se apresentaram no âmbito de uma ação coletiva, promovida por movimentos sindicais e ONGs, que desencadeou uma investigação do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo contra a montadora. As acusações e o inquérito no Brasil levaram Grieger e sua equipe a iniciar uma pesquisa sobre o papel da Volkswagen no regime militar brasileiro e a buscar um diálogo, nem sempre fácil, com os trabalhadores perseguidos. No meio deste processo, em outubro de 2016, porém, Grieger teve que deixar a montadora. Uma recensão crítica que escreveu sobre um estudo referente a outra empresa do grupo, a Audi, teria tido um papel decisivo para a saída do historiador. Provavelmente, a filosofia de Grieger de não ignorar as questões históricas mais dolorosas, que foi colocada em prática consequentemente ao longo dos anos, nunca fez completamente parte da mentalidade da empresa. Segundo uma reportagem da emissora de televisão alemã ARD, exibida em 24 de julho de 2017, para a diretoria da montadora, as pesquisas de Grieger sobre o Brasil também teriam ido longe demais.

A saída de Grieger gerou fortes protestos da comunidade de historiadores na Alemanha, assim como relatos desapontados da mídia e de sindicatos no Brasil. Diante dessas reações críticas, a Volks contratou de imediato o historiador Christopher Kopper para realizar uma investigação externa independente sobre a relação da montadora com a repressão estatal no Brasil. Mas será que a Volkswagen realmente tinha interesse de esclarecer sua responsabilidade legal? A empresa queria saber exatamente o que aconteceu na sua própria fábrica? Se fosse esse o caso, a montadora poderia ter apoiado o trabalho do cientista político Guaracy Mingardi, que foi engajado pelo MPF alguns meses antes para fazer uma pesquisa histórica semelhante. O procurador responsável pelo caso, Pedro Machado, contou que pediu, porém, em vão, para que a Volks participasse do inquérito entregando documentos do arquivo interno da empresa.

A Volkswagen poderia ter apoiado também pesquisadores brasileiros que há anos trabalham no esclarecimento das responsabilidades de empresas durante o regime militar, como o grupo Mais Verdade, do Rio de Janeiro, ou Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP), de São Paulo. No geral há no Brasil historiadores extremamente competentes e especializados na História da Ditadura. As circunstâncias que deram origem ao estudo solicitado pela Volks dão, no entanto, a impressão de que para a presidência da empresa apenas um pesquisador alemão garantiria a seriedade e objetividade, não importando se esse teria ou não conhecimento profundo sobre história, cultura e idioma do Brasil.

Numa entrevista à ARD, Kopper reconheceu que precisou primeiramente aprender português se familiarizar com o tema. Em seu relatório final, fica claro que ele obteve um certo sucesso nesse processo. Ao mesmo tempo, no entanto, historiadores sabem o quão fundamental é conhecimento do idioma e de contextos históricos e sociais para o seu trabalho. Por isso, apesar da assídua pesquisa, Kopper não conseguiu incluir em seu estudo muitos dos documentos do aparato de repressão do Estado brasileiro, que foram reproduzidos no relatório final de Mingardi.

Mesmo com esses obstáculos, Kopper apresentou no outono de 2017 um texto, de 126 páginas, sério e objetivo que comprovou grande parte das suspeitas contra a Volks, assim como o relatório de Mingardi enviado ao Ministério Público Federal. O historiador alemão mostrou que a filial da Volks no Brasil considerou o golpe militar de 1964 positivo, além de ter sido absolutamente leal ao regime militar. O documento concluiu ainda que, entre 1969 e 1979, houve uma colaboração do departamento de segurança da fábrica com o Dops, sobre a qual a diretoria tinha conhecimento implícito. Esse mesmo departamento facilitou a prisão de operários numa época em que a prática da tortura cometida por órgãos de repressão era conhecida pelo público brasileiro e alemão. Funcionários também eram vigiados e “listas negras” com nomes de trabalhadores considerados subversivos foram trocadas com outras empresas para impedir a contratação destes na indústria automotiva. Em relação à exploração de trabalhadores rurais na fazenda na região da Floresta Amazônica, Kopper cita uma “responsabilidade indireta” da montadora.

No dia 14 de dezembro de 2017, por ocasião da publicação do relatório de Kopper, as vítimas foram convidadas para participar de um evento em São Bernardo do Campo. O grupo, no entanto, não recebeu informações prévias sobre a programação do ato. Dessa maneira, alguns operários que foram perseguidos decidiram protestar na entrada da fábrica contra a encenação montada pela Volks. “Não queremos festa, queremos justiça!”, dizia uma das faixas levadas pelos manifestantes.

Enquanto isso, no auditório da fábrica, a Volkswagen usou a divulgação do relatório para se vangloriar como uma multinacional consciente de sua história. A mensagem enviada com o evento, porém, foi discrepante, soando mais como uma rejeição da própria responsabilidade histórica. Apesar dos esforços da direção na Alemanha para que o estudo fosse realizado por um pesquisador alemão, nenhum diretor alemão esteve presente no ato, como se o caso tivesse se tornado de repente um problema exclusivamente local. O porta-voz da Volks, Pablo Di Si, atribuiu os abusos comprovados no relatório a “indivíduos”, disse em nome da montadora que lamentava o acontecido – porém, sem formular o esperado pedido de desculpas –, e inaugurou uma placa em homenagem às “vítimas da ditadura”, na qual não há nenhuma referência à Volkswagen e aos funcionários que foram perseguidos pelo departamento de segurança.

Em entrevista na Alemanha, Kopper afirmou que recomendou à montadora que fizesse um pedido oficial de desculpas às vítimas, além de indenizá-las. O fato do historiador ser praticamente desconhecido no Brasil não ajudou para transformar essas recomendações numa reivindicação pública da sociedade brasileira. Com o sucesso da campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018 e a tomada do poder por nostálgicos da ditadura, que gostariam de enterrar a lembrança às vítimas do regime militar, o relatório de Kopper caiu praticamente no esquecimento.

A direção da Volks em Wolfsburg sabe que na Europa seria inconcebível para uma empresa respeitável flertar abertamente com políticos fundamentalistas como Witzel ou Bolsonaro. No decorrer das últimas três décadas, o atual presidente defendeu valores e práticas como tortura, massacres e prisão política, que lembrariam aos alemães o pior momento da história do seu país. Recentemente, ao voltar de uma viagem oficial a Israel, o ex-militar chocou novamente o público alemão ao afirmar que se pode “perdoar” o Holocausto.

Apesar da rasante queda de popularidade e de um comportamento diplomático catastrófico, o governo brasileiro espera, por meio de uma política neoliberal, ganhar o apoio de atores econômicos globais e assim se tornar aceitável nas esferas da política internacional.

Será preciso observar seriamente como a Volks, uma das fabricantes de veículos historicamente mais importante do Brasil, lidará com a questão da responsabilidade histórica no atual momento. A empresa participa atualmente das negociações com os trabalhadores perseguidos. A Volkswagen, no entanto, só aceitou negociar um acordo depois de ser ameaçada com um processo judicial.

Nestas negociações, um passo histórico poderá ser dado se a Volks aceitar uma abordagem conciliadora sobre seu passado e se posicionar ao lado das vítimas com uma política de reparação material e simbólica. Com essa postura, a montadora poderia encorajar um processo de pesquisa e debate sobre a ditadura militar, que se faz mais necessário do que nunca no Brasil. Agora, se a montadora varrer esse assunto para debaixo do tapete e continuar tratando o governo Bolsonaro como um parceiro totalmente normal, essas atitudes serão não somente devastadoras para a democracia brasileira, como revelarão que a Volkswagen não aprendeu quase nada em mais de 30 anos de trabalhos de memória na Alemanha.

Confira aqui a versão original do artigo, em alemão.

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