Natália Turíbio

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela PUC-SP. Advogada criminalista, com atuação na defesa dos Direitos das Mulheres. Sócia do escritório NTA Advogadas.

Opinião

A repugnante condenação de Schirlei Alves e os ecos do caso Mariana Ferrer 

Vítimas de discriminação de gênero continuarão sendo tratadas e punidas como se criminosas fossem – e os agressores são colocados no papel de vítimas. 

A Influenciadora Mariana Ferrer. Foto: Reprodução/Instagram Influenciadora Mariana Ferrer (Foto: Reprodução/Instagram)
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Como bem afirmou a ministra Cármen Lúcia no julgamento da ação que declarou a constitucionalidade da Lei Maria da Penha em 2012, julgamentos como aqueles “significam para mulher que a luta pela igualação e dignificação está longe de acabar” – a Lei Maria da Penha foi promulgada em 2006 e só 6 depois foi validada pelo STF.

Tocar nessa ferida gera consequências, especialmente para mulheres que ousam se insurgir contra a violência que elas próprias ou outras mulheres sofrem.

Exemplo disso é a recente notícia da condenação criminal da jornalista Schirlei Alves, alvo de duas queixas-crime (uma do juiz Rudson Marcos e outra do promotor Thiago Carriço, que atuaram no caso Mariana Ferrer) pelo crime de difamação. A reportagem escrita por Schirlei para o Intercept Brasil expôs graves violências processuais e institucionais ocorridas no curso da ação penal em que Mariana Ferrer figurou como vítima de estupro de vulnerável. A condenação de um ano de detenção e pagamento de R$ 400 mil em indenização contra a jornalista foi proferida pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer do TJ/SC.

Segundo o advogado de Schirlei, Rafael Fagundes, “a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema“. 

A Federação Nacional dos Jornalistas emitiu nota ressaltando que “a tentativa de silenciamento de Schirlei Alves, que já vinha sendo perseguida desde a publicação da reportagem e sua repercussão, é um violento atentado à liberdade de imprensa, ao exercício profissional do jornalismo e à democracia e merece nosso mais veemente repúdio. Enxergamos, ainda, um preocupante viés misógino do Judiciário ao condenar uma mulher por denunciar violência contra outra mulher”. 

Já ao juiz Rudson Marcos foi aplicada pena administrativa mais branda de advertência, pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça. Conforme a relatora Salise Sanchotene, “a abertura do Procedimento Administrativo Disciplinar se concretizou diante da ausência de assertividade do juiz em função dos ultrajes dirigidos à vítima. O magistrado tinha o dever legal de impedir os abusos, evitando assim a revitimização da jovem envolvida no caso”.  

A divulgação das estarrecedoras ofensas e humilhações praticadas pelo advogado do então investigado contra Mariana Ferrer em audiência, tais como que ela mentia sobre ser virgem à época dos fatos e “não adianta vir com esse teu choro falso e essa lábia de crocodilo”, culminou na promulgação da Lei nº 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer) que coíbe a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas durante o processo, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento desta disposição legal. 

A violência processual de gênero consiste na espúria estratégia processual da utilização de discriminação de gênero que acarreta indevida revitimização: exposição da vida privada da vítima, de fatos alheios ao processo e compartilhamento de fotos visando manchar sua imagem e reputação, desmerecer sua palavra e culpabilizá-la pela agressão por meio de insinuações tais como que a mulher usa roupas curtas, possui vida social e sexual ativa, traiu o agressor, é vingativa, uma péssima mãe etc.

Trabalhos como o de Schirlei são fundamentais para expor as novas violências que por vezes as mulheres são submetidas ao acessar o Poder Judiciário e mudar padrões machistas e misóginos, os quais não devem mais ser tolerados. 

Quem atua na área dos Direitos das Mulheres sabe bem como as vítimas, suas advogadas, testemunhas, e nesse caso a jornalista, que no livre exercício de sua profissão e de forma muito corajosa denunciou as violações, estão sujeitas a ataques e retaliações. A condenação da jornalista é ultrajante e representa um obstáculo na luta das mulheres por uma vida sem violência.

A resolução nº 492/2023 do CNJ torna obrigatória a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, um guia para magistradas e magistrados para garantir acesso igualitário de gênero à Justiça e, além de outras medidas, cria o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, visto que atualmente a magistratura brasileira é composta em sua maioria por homens (apenas 38% são mulheres). 

O machismo estrutural e a misoginia ainda estão impregnados em homens e mulheres. Enquanto não houver uma mudança profunda de mentalidade, pouco adiantará termos uma das consideradas três melhores e mais avançadas leis do mundo para a proteção das mulheres (como é o caso da Lei Maria da Penha), pois vítimas de discriminação de gênero continuarão sendo tratadas e punidas como se criminosas fossem e os agressores colocados no papel de vítimas. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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