Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

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A República dos Bárbaros

No Brasil de hoje, as liberdades e garantias republicanas recuam diante da “liberdade” que reivindica a opressão do outros

Os ares da casa-grande escravocrata ainda circulam nas camadas mais profundas da sociedade brasileira - Imagem: Jean-Baptiste Debret/Acervo Itaú Cultural
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No livro Futuro Passado, Reinhart Koselleck busca desvendar os enigmas do tempo histórico. Convoco suas considerações para inaugurar minhas indagações a respeito do Brasil desvendado pelas eleições. Aí vai: Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Pois o tempo histórico, caso o conceito tenha mesmo um sentido próprio, está associado à ação social e política, a homens concretos que agem e sofrem as consequências de ações, às suas instituições e organizações. Todos eles, homens e instituições, têm formas próprias de ação e consecução que lhes são imanentes e que possuem um ritmo temporal próprio.

As rugas e cicatrizes vincadas no rosto dos brasileiros conservadores revelam as heranças da casa-grande. A metafísica antissocial do “homem de bem” está esculpida na figura do Senhor de Escravos, incumbido pela Natureza de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. Como bem diz meu amigo Mino Carta, os ares da casa-grande escravocrata ainda circulam nas camadas mais profundas da sociedade brasileira. As cicatrizes da história estão riscadas nas faces dos ricaços, de muitos remediados e até mesmo dos desfavorecidos que aspiram o amparo na crença.

Não são outros os fundamentos da ideo­logia da direita brasileira, como revela o discurso de Bolsonaro e de seus asseclas. Atolados no pântano da grana ou do ressentimento, esses fiéis, ricos, remediados ou pobres, estão convencidos das virtudes de suas crenças. No universo do conservadorismo brazuca, as instituições construídas ao longo da história das sociedades, sobretudo o Estado Moderno, com as garantias jurídicas e instâncias de controle da violência, são consideradas negacionistas das liberdades. Suas leis e seus métodos de punição são considerados insuficientemente rigorosos pelos fanáticos da virtude autoalegada.

Para eles, o formalismo da lei transforma a Justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz. Não por acaso, está bem esculpida nos corações e nas mentes dos “homens bons e virtuosos” a figura do vingador, aquele destemido que se desembaraça das limitações dessas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza do País. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando sua consciência, recuperando, portanto, a força da moral “natural”, aquela que Deus infunde no coração de cada homem.

É esse Totalitarismo da Boa Consciência que reivindica o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Não podemos colher outro ensinamento das imprecações agressivas de Jair Bolsonaro contra os ministros do STF. Ao apontar sua garrucha velha e enferrujada para Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso, Bolsonaro não pretende atingir as pessoas dos ministros, mas, sim, a instituição STF. No mesmo diapasão, seus fanáticos, ignaros e ressentidos apoiadores pretendem destruir as instituições que acompanharam a formação do Estado Moderno ao longo de séculos, no propósito de substituí-lo pelas regras das sociedades das cavernas.

A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade de um passado que não passa. Nessa passagem permanente para o Passado Futuro, as liberdades e garantias republicanas recuam diante da “liberdade” que reivindica a opressão dos outros. Essa é a “liberdade” movida pelo narcisismo dos ressentidos.

A metafísica antissocial do “homem de bem” está esculpida na figura do Senhor de Escravos, incumbido pela Natureza de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado

Nos últimos anos, os “homens bons” não se cansaram de disseminar, em seus tuítes e congêneres, as consignas que moveram homenzinhos que se exibem na Avenida Paulista: “direitos humanos só para os humanos direitos”. Nas manifestações dos moralistas transcendentais vejo a autoconvocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos juízes do Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.

No estágio atual da sociedade de massa, o controle social despótico dispensa a obviedade dos dólmãs, dos coturnos ou da cadeira do dragão. O totalitarismo do Terceiro Milênio não usa coturnos nem câmaras de gás. Usa a “informação” que não pensa em si mesma. O propósito da manipulação e da espetacularização disparadas nas redes sociais é tornar os indivíduos incapazes de compreender a natureza perversa da frenética guerra de fatos e versões “construídas” sob o acicate da concorrência para alcançar o “fundo do poço”.

As redes sociais, onde as ideias e as opiniões deveriam trafegar livremente, se transformaram num espaço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. Ela deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.

Seria uma descortesia dizer aos conservadores de passeata que desperdiço vela com defunto de segunda. Para não descumprir regras de civilidade, teimo em repetir aos ouvidos de quem quiser escutar: a sociabilidade moderna move-se entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, o Estado Moderno, ­suas liberdades e seus interesses.

Essa forma de sociabilidade, reivindicada pelo liberalismo político, rejeita a submissão dos indivíduos livres a transcendências religiosas, moralistas e midiáticas. É assustadora a indigência cultural dos que pretendem se colocar “fora” das misérias do mundo da vida, acima do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A República dos Bárbaros”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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