Delfim Netto

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Formado pela USP, é professor de Economia, além de ter sido ministro e deputado federal.

Opinião

A prioridade é fornecer água e esgoto tratado a todos

É lamentável observar o que ocorre na Câmara neste momento, com relação às dificuldades de aprovação da MP que regulará o saneamento

Congresso Nacional
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Com a eleição de Bolsonaro, parece ter chegado ao Brasil uma doença transmissível para a qual a vacina ainda é desconhecida: a desvalorização da atividade política, que, na Revolução Francesa, criou a ideia da “república democrática”. Esta prometia transformar o homem e a sociedade pelo exercício da política republicana: a negociação, a busca de consenso, a temperança, o respeito ao princípio majoritário (a proteção das minorias) e a continuidade do jogo eleitoral. É ele que, sem violência e em tempo certo submete o poder incumbente ao julgamento franco e aberto do eleitorado, parece estar cedendo, paulatinamente. Vemos renascer o autoritarismo perigoso que nega o exercício da política e habitou a maior parte da história do homem e das sociedades nos últimos 3 mil anos.

Trata-se do fim do exercício político que nos últimos 200 anos produziu as duas dezenas de sociedades desenvolvidas. Elas encontram-se, também – graças a lamentáveis erros de política econômica “científica” –, em situação instável. Deram ao setor financeiro o domínio do sistema produtivo real e acentuaram a desigualdade de rendas a ponto de torná-la insuportável. A dúvida, hoje, é se o velho modelo esconde uma imperfeição endógena, que não pode ser corrigida pelo exercício da política. Creio que a resposta é negativa.

 

Namora-se, entretanto, com uma democracia iliberal, que costumava ser uma contradição em termos, que nega a solução pelo exercício da política. Ela coloca em seu lugar a manipulação da voz das ruas que deseja “vingança” pelo que sofre e não “justiça” na qual não acredita.

O Brasil também está metido nessa encruzilhada. A Constituição de 1988, com os magníficos Princípios e Direitos Fundamentais contidos nos primeiros 11 (4,5%) dos seus longos 250 Artigos, sugere instituições que, consolidadas, produzirão uma sociedade civilizada.

Em 1986 houve uma eleição normal com as regras vigentes. Os eleitos transformaram-se em constituintes. Havia, obviamente, diferenças ideológicas, mas o “espírito do tempo” que comandava a assembleia exigia a contenção absoluta do poder do Estado. Foi isso que construiu os 11 Artigos referidos acima, que são o primeiro vetor do tripé sobre o qual se apoia aquela sociedade civilizada.

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O segundo vetor é uma substantiva “igualdade de oportunidades” que se revela nos dispositivos constitucionais: educação e saúde básicas para todos, financiadas por todos. Mais que isso, ela envolve o direito de toda gestante, independentemente do seu estrato social, cor ou credo, ao acompanhamento no parto e, ao nascituro, a atenção da sociedade até seus primeiros sete ou oito anos de vida, quando a sua capacidade cognitiva será independente da história de seus genitores. A fundamental “justiça social” se faz na partida da corrida para a vida, não na chegada.

O terceiro vetor é a organização das relações produtivas que garantam a subsistência material do cidadão de forma eficiente. Pois bem, até hoje o homem não encontrou mecanismo mais eficiente do que os mercados competitivos. A história econômica mundial sugere que formas alternativas de organização produtiva, monopólio ou oligopólio, têm custos sociais que reduzem o bem-estar da sociedade. O pior arranjo produtivo é entregar o monopólio a agentes públicos de empresas estatais que gozam da estabilidade e inamovibilidade no emprego e de aposentadoria privilegiada. Isso os leva a recusar qualquer inovação produtiva que possa ameaçar sua tranquilidade. Esse fato é visível na reação corporativista que os une contra a competição, como agora no saneamento.

É lamentável observar o que ocorre na Câmara Federal neste momento, com relação às dificuldades de aprovação da Medida Provisória que regulará o saneamento. Elas vêm das corporações que sempre controlaram o setor sem controle para cumprir seus objetivos. Basta ver o que fizeram nos últimos 40 anos para saber que não levaram a sério o gravíssimo problema, como é comum às tecnoburocracias cujo grande objetivo é uma rica e precoce aposentadoria.

Para caminhar na direção da “igualdade de oportunidades”, a prioridade é imprimir, na maior velocidade, a provisão de água e esgoto tratado para todos, o que potencializará o efeito da saúde e da educação. O diferencial de água e esgoto tratados dentro da população reproduz e reforça, fielmente, as diferenças das capacidades cognitivas dos cidadãos marginalizados. É inconcebível ver a esquerda “infantil” apoiar a corporação que é a favor da continuidade da redução da capacidade cognitiva dos estratos mais pobres da nossa sociedade.

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