Opinião

A política que não oferece um sonho não satisfaz e pode sucumbir ante um criminoso

Em um mundo em que o nazifascismo vai impregnando, novamente, a política, as reflexões de Maquiavel merecem crédito e compreensão

A política que não oferece um sonho não satisfaz e pode sucumbir ante um criminoso
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Foto: Agência Brasil
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“Não é porque não vivemos uma história que deixamos de senti-la” – Mestre Délcio Teobaldo, citado por Luiz Antonio Simas

Memórias de diplomatas são quase um gênero literário, dos mais enfadonhos, diriam muitos, não totalmente despidos de razão…

Entretanto, ao alcançarem um ponto tão baixo, não posso deixar de mencionar como foi que vivi as relações entre o Brasil e a Nicarágua, nos anos 80.

Cheguei para trabalhar na embaixada do Brasil em Manágua em janeiro de 1986.

Tempos difíceis de contrarrevolução. Luz e água faltavam quase diariamente. Os contras atacavam as cooperativas agrícolas, matando mulheres e crianças, indiscriminadamente.

Toda a infraestrutura da produção rural estava sob risco, em um país de economia eminentemente agrícola.

Em novembro, vim de férias ao Brasil e fui ao Itamaraty para conversar com colegas sobre o posto, suas peculiaridades e dificuldades.

No departamento cultural do MRE, encontrei um amigo e lhe expus a situação da chancelaria da embaixada: tínhamos uma casa de madeira, que fora consultório odontológico do ex-proprietário, a qual fora adaptada para ser um centro de estudos brasileiros, que deveria contar com aulas de português etc.

Entretanto, faltavam-nos recursos para a compra de alguns equipamentos de projeção, material didático etc.

O colega, então, perguntou de quanto precisaríamos para inaugurá-lo: liguei para o embaixador e ele me disse que no mínimo seriam necessários 5 mil dólares, ao que meu colega respondeu positivamente, empenhando os recursos de imediato.

Dessa forma, inauguramos, em 1987, o centro de estudos, que, em seu período áureo, contou com mais de trezentos alunos matriculados e uma galeria de arte, anexa, que abrimos com uma belíssima exposição sobre futebol (tela de Cláudio Tozzi, entre outros artistas plásticos brasileiros).

Talvez, os diplomatas pudessem aprender com os médicos a encarar os momentos de desdita como um desafio à saúde das relações, que, em seus momentos mais críticos, mereceriam ser atendidas por equipes especializadas, qual UTIs diplomáticas.

Mas a política tem suas matizes, como nos recorda Patrick Boucheron em Um verão com Maquiavel (editora L&PM), citando Maquiavel, em Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio: “O príncipe que quiser salvaguardar-se das conspirações deve temer mais aqueles aos quais fez muito bem e menos aqueles a quem fez muito mal”.

No fim de semana passado, em que a extrema-direita alemã, nas eleições regionais no leste do país, marcou sua vitória mais importante desde o fim do nazismo, valeria refletir sobre a atualidade de Maquiavel, o êxito ou o fracasso de uma anexação em bases econômicas, sinal de alarme que também deveria ser ouvido deste lado do Atlântico, pois “a gente não quer só comida”.

A ascensão de Pablo Marçal na corrida para a eleição municipal em São Paulo vai nesse sentido.

A política que não oferece sonho, utopia, não satisfaz, podendo até sucumbir ante um criminoso, como ocorrera na eleição presidencial de 2018.

Na mesma obra, Boucheron cita uma correspondência de Maquiavel em que o diplomata florentino confessa: “Há algum tempo [escreve para o amigo Guicciardini, em 17 de maio de 1521], eu não digo o que penso nem penso o que digo e se, por vezes, digo a verdade, escondo-a no meio de tantas mentiras que é difícil descobri-la”.

Em um mundo em que o nazifascismo vai impregnando, novamente, a política, também essa reflexão de Maquiavel merece crédito e compreensão.

Para ficar apenas no caso alemão, nas vésperas da vitória da extrema-direita na Alemanha, o primeiro-ministro Olaf Sholz anunciara o relaxamento das regras para a venda de armas no país.

Quando a esquerda se deixa contaminar a esse ponto pelas pautas da direita, como esperar que o eleitorado consiga distinguir entre verdade e mentira?

No último número da icônica revista portuguesa Seara Nova (homenageada até como logradouro em Lisboa), lemos, a propósito: “Na UE, há 94,6 milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social, revela o Eurostat..75% dos refugiados foram acolhidos por países de baixo e médio rendimento…Uma em cada três crianças no Norte da Faixa de Gaza está gravemente desnutrida ou a sofrer de definhamento, de acordo com a UNICEF”.

Então, a quem serve a UE, se não às elites alemãs, francesas, italianas etc?

Como esperar que essa exclusão social absurda não seja caldo de cultura das extremas direitas?

A fruta não cai sempre perto do pé? Não somos assim também nós os seres humanos, que prezamos nossos laços sociais e familiares? Não são, por essa razão, os países fronteiriços os que de fato arcam com o peso da imigração e não os do Norte, como nos querem fazer crer os fascistas setentrionais, cada vez mais bramindo o fantasma da imigração, que, no fundo, não passa de racismo disfarçado?

Como a diplomacia europeia está tentando freiar a sanha genocida da extrema-direita israelense?

Tenho a impressão de que, sem respondermos a essas perguntas, as esquerdas terão sempre maior dificuldade em se diferenciar do fascismo aos olhos dos eleitores e das eleitoras, em toda e qualquer latitude, mas, ainda pior, naquelas em que a besta nasceu, vicejou e se reproduziu, emigrando depois para todos os continentes.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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