CartaCapital
A política de morte aplicada na exclusão de cotas para transgêneras
Bolsonaro interviu contra a proposta da criação de cotas para ingresso de pessoas transgêneros – travestis e transexuais


Há uma tristeza, uma angústia que me toma. Caberia um arrazoado para dizer da usurpação de competência do presidente da repubiqueta (chegamos a isso!), no que diz respeito a intervenção promovida junto a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – Unilab, em relação a proposta da criação de cotas para ingresso de pessoas transgêneros – travestis e transexuais – pessoas intersexo e pessoas não-binárias. Eram 120 vagas.
Alguns dirão que o processo é questionável, a Constituição dirá que a Universidade tem autonomia e, entre a guerra normativa, estarão novamente um conjunto social que são premidos e premidas do exercício de sua cidadania, garantida pela própria lei. Não sou dado a replicação de normas, pois de acordo com a filosofia política de Agamben, é sob a justificativa delas que se tem levado esse país ao extremo do ódio.
De qualquer forma o questionamento promovido pela Procuradoria Geral da República(?) considera que a Lei de Cotas não prevê vagas específicas para o público alvo do edital. Oras, se não se pode existir, como é que a lei quer prever ? Confundir a vida com regra, tornar pela regra a vida em resíduos:
O que é uma regra, se ela parece confundir-se em resíduos com a vida? E o que é a vida humana, se ela já não pode ser distinguida da regra ? (Agamben)
Pessoas transgêneros tem sua geração de sua renda em 90% dos casos a partir do trabalho sexual. Em média são expulsas e expulsos de casa por volta dos 13 anos, considerando que a regra sexual normativa não permite dissidências – o que se tem como abjeções e corpos estranhos não são toleradas. Sequer conseguem concorrer em condições de igualdade com qualquer outro sujeito, pois partem de condições extremamente desiguais. Quantos de nós que lemos esse artigo nos submetemos a essas duras condições de existência ?
Se a lei permite direitos, ela retira de sujeitos sua condição de existência.
A fórmula do ódio que implementa a política de morte funciona por meio do suborno social: te concedo o direito mínimo, assim, você terá um nome, um marcador importante para que considere sua existência, mas não terá um corpo. A existência estatal de quem reiteradamente vem sendo retirada e retirado das estruturas do país é feita por meio da humilhação estatal. O corpo deve novamente se pôr nas ruas para reivindicar a possibilidade do direito mínimo, desde sempre o acesso à educação.
Se a lei deve ser garantia mínima para que se evite o preconceito por identidade de gênero e/ou orientação sexual, o Estado novamente infringe a Constituição à medida que não considera as condições necessárias de acesso às instituições, mais do que isso, exclui uma parcela que é vítima sistemática da política morte, formando os resíduos do que alguns possam considerar uma vida. A redução à condição meramente biológica que transformou as diferenças sexuais em políticas e tornou algumas vidas descartáveis é reforçada por cada ato das instituições do governo que agem conjuntamente produzindo vulnerabilidades, omissões e mortes. Constituir status legal, mas reiterar que algumas vidas importam mais do que as outras.
Frisamos a autonomia da Universidade para que ela promova a autonomia dos sujeitos, eis aquilo que o governo quer evitar!
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