Diversidade

A polícia do gênero também somos nós

O sistema de discriminação de gênero e sexualidade é complexo e vai além de leis e instituições

Foto: Leo Pinheiro/ Fotos Públicas
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É comum encontrar referências, quando se fala sobre gênero, sexualidade e controle, a leis manifestamente sexistas, ou que geram efeitos diferenciados na população em função do gênero e da sexualidade, e às instituições que realizam ações marcadamente desigualitárias.

Por exemplo, podemos ouvir que “a polícia é machista e LGBTIfóbica” ou que “tal legislação tem um resultado negativo sobre as mulheres”. Obviamente não poderia defender que as atuações policiais e as normas não têm ou não podem ter um caráter machista e cisheterossexista, porque a realidade seria a primeira grande barreira a interditar esse ponto de vista. Senão que as normas de gênero, para sua efetiva articulação e prática, precisam ser repetidas constantemente em vários contextos, relações e por múltiplos sujeitos. É só assim que essas normas ganham capilaridade, força discursiva e coercitiva e efetividade nos espaços sociais.

Com isso, quero dizer que para que haja o triunfo do gênero como sistema (social, cultural, psíquico, político, etc.) são necessárias tanto a reprimenda dos pais aos comportamentos “femininos” do seu filho, quanto a abordagem violenta da polícia à travesti que tenta denunciar a truculência policial, como aconteceu com a veterinária Sol Santos Rocha, travesti negra, neste mês de março, quando foi agredida e acusada de desacato após filmar uma abordagem policial violenta.

 

Para que o sistema de gênero continue mantendo seu poder de ação opressivo e desigual, são igualmente necessárias leis que tentem proibir o ensino sobre gênero e sexualidades nas escolas como protestos públicos de sujeitos individuais para pressionar uma menina de 10 anos vítima de estupro a dar à luz. É assim que o gênero exerce seu controle e aparece como estrutura sociocultural que ameaça a existência de pessoas determinadas.

O corpo tem uma dimensão inevitavelmente pública. Quando aparecemos, apresentamos nossos corpos aos olhares alheios, às expectativas e perspectivas dos demais, que quase nunca podemos controlar. Ser corpo é, portanto, ser vulnerabilidade e risco. Mas nem todas as pessoas são igualmente vulneráveis.

Partindo das formulações de Judith Butler em Vida precária e Corpos em aliança e a política das ruas, podemos dizer que o poder e a precariedade são diferencialmente distribuídos entre os corpos, isto é, alguns corpos estão menos sujeitos à vulnerabilidade e ao risco que outros: “a precariedade está diretamente ligada às normas de gênero, uma vez que sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência. As normas de gênero têm tudo a ver com como e de que modo podemos aparecer no espaço público.”[1]

A pensadora estadunidense Judith Butler.

As mulheres cisgênero (ainda que sigam padrões validados de feminilidade) e as pessoas em geral que fogem das exigências asfixiantes das normas de gênero, e que não podem viver sua vida de fato senão fora dessas exigências, são grandes alvos de controle. Sem dúvidas, estão mais expostas à violência que os homens cis héteros que incorporam os cânones da masculinidade hegemônica. E ainda mais expostas se forem pobres, negras, de minorias étnicas…

Mas parece que às vezes esquecemos as sutilezas das tecnologias socias que se fundamentam em torno do machismo e do heterossexismo… Quando falei do corpo e sua dimensão pública, quis dizer que muitas vezes não é preciso uma lei ou uma atuação policial para manter o império da normatividade de gênero, porque esses olhos que nos observam são também a polícia do gênero. E alguém pode dizer “mas os olhares não são uma violência como tal”, e em algumas situações esse alguém pode até ter razão, porém são um mecanismo social de controle. Muito menos diretos que a violência física, por exemplo, e certamente menos agressivos que um insulto em alto e bom som, mas são instrumentos muito eficazes.

Os olhares que não nos reconhecem, que não podem entender determinadas formas de apresentar uma identidade de gênero, que veem alguns corpos como meros objetos para satisfação de um desejo ou um fetiche, que olham com asco ou desdém, são delicados e elaborados instrumentos para regular o corpo, a identidade, a subjetividade, o gênero.

À primeira vista, pode-se pensar que essa efetividade não é tão robusta assim. Mas esse não reconhecimento, esse estranhamento dos olhares que recebemos escondem que estamos sendo lidos como “sujeitos impossíveis”, “identidades absurdas”, “corpos inabitáveis”. E é essa leitura que se potencializa e que, frequentemente, pode se converter numa agressão ou num assédio. Às vezes parece que para constatar tudo isso precisamos de exemplos fáticos e exponenciados.

Sendo assim, que esconde a notícia “Homem agride esposa durante briga por causa de roupa em RO”[2]? Que os olhares do marido sobre a esposa não a reconheciam como uma “mulher possível”, já que parte da ideia de que mulheres possíveis são aquelas merecedoras de “respeito” e “reconhecimento”, e isso passa pelo cumprimento de um ideal feminino que se vincula ao tipo de roupa que usam. E o que está por trás da manchete “Pai corta couro cabeludo do filho com faca ao alegar que corte de cabelo era de ‘homossexual’”[3]? Do mesmo modo, o filho não passava pelo filtro das normas de gênero (que têm implicações sobre a sexualidade): comportava-se de maneira “inadequada” para as expectativas sociais criadas sobre seu corpo, manifestava uma identidade inaceitável porque rompia com as idealizações do masculino e, portanto, da heterossexualidade compulsória vinculada a elas.

Assim, é necessário falar e atuar contra as normas de gênero. E é impossível fazer isso sem questionar construções generificadas que julgam determinados sujeitos como impossíveis e determinados corpos ou formas de apresentá-los como intoleráveis. É preciso esvaziar os corpos e os sujeitos de conceitos culturais que os vulnerabilizam. É preciso transformar as formas como reconhecemos uns aos outros.


[1] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2019, p. 41.

[2] https://g1.globo.com/ro/ariquemes-e-vale-do-jamari/noticia/2018/11/25/homem-agride-esposa-durante-briga-por-causa-de-roupa-em-ro.ghtml

[3] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/03/11/pai-corta-couro-cabeludo-do-filho-com-faca-ao-alegar-que-corte-de-cabelo-era-de-homossexual-diz-policia.ghtml

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