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A perversão desumana do lavajatismo

Lavajatismo é uma corrente movida pelo amor aos bancos, degeneração humanística, perseguição política e episódios éticos controversos

Foto Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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Lavajatismo e bolsonarismo são fenômenos que se confundem. Seus valores são praticamente os mesmos: moralismo exacerbado, messianismo, criminalização da política, ojeriza a evidências científicas e desprezo ao que se convencionou a chamar de estado democrático de direito. Tudo temperado com um maniqueísmo adolescente e com uma profunda, bizarra e constrangedora indigência intelectual.

Moro, divindade maior do lavajatismo, nunca escondeu que a operação da qual decorre sofre de azia quando se depara com o que considera a maior arma de que os malvadões corruptos dispõem a seu favor: o devido processo legal, uma conquista civilizatória própria das democracias liberais onde o réu tem a garantia de, ao ser processado, saber de antemão quais são as regras do jogo.

As garantias da imparcialidade do juiz e da presunção de inocência também alimentam a úlcera dos lavajatistas – exceto quando são os bancos que entram na reta da operação. Estes, a propósito, têm uma suíte presidencial, com direito ofurô e vista para o mar, no coração de cada procurador e procuradora da força tarefa, como mostraram as conversas divulgadas pelo El País e pelo The Intercept Brasil no último 23 de agosto.

Sergio Moro, cujos vazamentos recentes mostram que coordenou a acusação, foi juiz do caso Lula, de condenação questionada em todo mundo. Moro atuou para prejudicar a campanha de Fernando Haddad e auxiliou a campanha de Bolsonaro, do qual é ministro da justiça (Photo by Carl DE SOUZA / AFP)

As cabeludas mensagens da Vaza Jato serviram para desligar de vez os aparelhos do simulacro de republicanismo que, diferentemente do Itaú, Bradesco e Santander, jamais encontrou espaço nos corações de Moro e Dallagnol. A partir daí, qualquer um com um mínimo de honestidade intelectual se viu obrigado a abandonar de vez o referencial legal na hora de passar pano nas malandragens da dupla. Mesmo o argumento miliciano de que “os fins justificam os meios” passou a ser mais coerente e honesto, embora não menos grosseiro.

Nesta terça, 27 de agosto, as novas mensagens divulgadas demonstraram que a perversidade e o cinismo também compõem as afinidades entre a turma do Planalto e os delinquentes força tarefa. Nelas, os lavajatistas tratam com ironia e deboche a morte de Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula, acusado de “mimimi” e de “vitimização”; fazem chacota de seu enterro; sugerem que Lula estaria feliz, pois poderia continuar a trai-la; atribuem o AVC que sofreu ao consumo de carne salgada e levantam a possibilidade do seu aneurisma ter sido planejado. Um show de horrores.

A maldade se estende também às mortes do irmão do ex-presidente, Vavá, e do seu neto, Arthur. Enquanto os procuradores politizam a questão, interpretando o pedido de Lula para comparecer ao velório do irmão como a intenção de um “safado” que “só queria passear”, procuram desesperadamente por obstáculos logísticos na expectativa de que seu direito de velar familiares seja desrespeitado. “Preparem para nova novela ida ao velório”, comenta certa procuradora após o trágico falecimento de Arthur, de apenas sete anos de idade.

Lula em velório de Marisa. Foto: Nacho Doce/Reuters/ZUMA Press/fotoarena

A crueldade é permeada com a hipocrisia e a antipolítica que melhor caracterizam a operação. O procurador Roberson Pozzobon, que junto com Dallagnol procurou articular um esquema de laranjas com suas esposas para enriquecer com palestras, conclui que o pesar do ministro Gilmar Mendes com a morte de Arthur seria uma tentativa vã de humanizar Lula, acusado de agir como um – vejam vocês – político ao passo que uma colega procuradora é incrivelmente acusada de “partidária” por ter comparecido ao velório da “Ré Marisa Letícia”. Narciso, afinal, acha feio o que não é espelho.

O lavajatismo é uma doença. É tão vil, criminoso e incivilizado quanto o bolsonarismo em suas mais obscenas expressões, a exemplo das afirmações de Bolsonaro sobre Fernando Santa Cruz e seus declarados desejos de eliminar qualquer coisa que, discordando de seus terraplanismos, possa ser considerada de esquerda.

A ligação é orgânica, umbilical, inconfundível. Além de Moro, ao menos dezoito nomes da Lava Jato ocupam cargos no governo – incluindo a delegada Erika Mialik, responsável por conduzir um inquérito destrambelhado que, após desgraçar a vida de Luiz Carlos Cancelier, ex-reitor da UFSC, levou-o a tirar a própria vida.

“Eu hoje, como professor da UFSC, sou uma pessoa que tem orgulho e alegria. Como desembargador, tenho vergonha. (…) Porcos e homens se confundem, fascistas e democratas usam as mesmas togas. Eles estão de volta. Temos que pará-los. Vamos derrubá-los novamente”, disse Lédio Rosa de Andrade, professor e desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em discurso sobre o suicídio do seu colega e amigo.

A mistura de estupidez, fascismo e desumanidade que ceifou a vida de Cancelier é a mesma que, conjugada com um desavergonhado ódio à democracia, contribuiu para criar a atmosfera que possibilitou o encarceramento da maior liderança popular do continente. Foi ela também que ajudou a abreviar a vida de Dona Marisa.

Além da degeneração moral e da notória mediocridade intelectual, há no lavajatismo uma perversidade sádica que deságua na ausência de qualquer empatia e sensibilidade com quem elege como inimigos (não deveriam existir “inimigos” em processos judiciais, é bom lembrar), comportando-se à imagem e semelhança daquele que, segundo Carlos Fernando Santos Lima, ex-integrante da força tarefa, era o favorito da Lava Jato nas eleições de 2018. “Não quero a Lava Jato vista como perseguição ao PT e co-responsável pelas eleições”, desabafou a procuradora Jerusa Viecili em conversa publicada no final de junho. Foi Viecili que referiu à ida de Lula ao velório do neto como uma “novela”.

José Carlos Mariátegui, jornalista e escritor peruano, escreveu pequenas biografias sobre personalidades históricas compiladas no livro “Do sonho às coisas: retratos subversivos”. Ao tratar de Mussolini, Mariátegui define o fascismo não como uma seita programática e conscientemente reacionária, mas como um movimento organizado que se considerava revolucionário em seus propósitos de “limpar” a sociedade.

Rosa de Andrade já explicou: sobre os ombros de democratas e fascistas caem a mesmas vestes.

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