Justiça

A pedagogia da prosperidade para concurseiros produz ilusões

Aprovação em concurso público como sinal de sucesso na vida produz ilusões na vida da pessoa aprovada

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A aprovação em um concurso pública é uma vitória? Existe trajetória de sucesso? Aliás, o que é o sucesso? Em tempos de isolamento promovido compulsoriamente pela pandemia, continuam a pulular depoimentos sobre trajetórias exitosas, bem como sobre os métodos infalíveis para a obtenção de um cargo. Diante desse cenário, algumas questões me inquietam e daí vejo a necessidade de problematizá-las no curso deste texto.

É de suma relevância que essa inquietude decorre de duas formas que o verbete é apresentado em renomado dicionário, a saber: tormento/preocupação e o ato de querer saber e conhecer mais[i]. Há assim a identificação de um problema, que aqui é denominado como a “pedagogia da prosperidade”, expressão cunhada pelo grande jurista Lênio Streck, e uma tentativa de compreensão da sua existência.

Há de se ressaltar, inicialmente, que não se está aqui a realizar um ataque gratuito aos professores. Em um país que descaradamente nega o conhecimento produzido no ambiente acadêmico, o verdadeiro professor é um herói anônimo, pois quase nunca é valorizado e sempre se vê desafiado após uma breve consulta no Google ou na Wikipédia. O seu compromisso é com a construção do saber, sendo importante para essa missão o ato de escutar o seu aluno.

Os problemas aqui trazidos são de outra ordem. Frutos de um discurso de nítida índole triunfalista, o que esse simulacro de professor tem como objetivo exclusivo transferir as informações que possui. De posse desses dados, deverá o aluno decorá-los para que, assim, seja demonstrado um conhecimento, que, na verdade, não possui. Na verdade, ele regurgitará o memorizado diante do seu examinador. Sim, a pedagogia da prosperidade está intimamente relacionada com o concurso público.

Não são, portanto, professores, mas sim adestradores de seres humanos que abdicaram de sua mais importante função: pensar. E tudo isso justificado na lógica de que o que importa é a aprovação. Músicas e tantos outros métodos mnemônicos são empregados nessa capacitação de memória curta. Quem aqui não se recorda de determinado vídeo que viralizou por realizar associação das emendas constitucionais às próteses de silicone?

É preciso aprofundar esse exame, pois há de se indagar como a dita – e renomada – comunidade jurídica tem a audácia de reclamar de decisões judiciais e manifestações de defensores públicos, advogados públicos ou privados e integrantes do Ministério Público, se a grande parte dos integrantes dessas instituições se submeteram a esse tipo de heterodoxo de aprendizado.

Não é de hoje que esse modelo pedagógico é criticado, sendo certo que a censura mais importante foi a realizada por Paulo Freire. O citado pedagogo repudiou veementemente a figura da chamada educação bancária:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis a concepção ‘bancária’ da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.”[ii]

Quiçá, e agora já se faz uma análise que leva em consideração a segunda forma destacada para se entender a inquietação, a submissão preparatória para o concurso consiga explicar a prepotência cotidiana dos fóruns. Autoridades adestradas a obedecer e criadas em um ambiente de competição, ou seja, sem a figura do diálogo, reverberam isso no tratamento com seus pares e, principalmente, com pessoas que se encontram em situação de inferioridade processual. Essa arrogância é aferida também no caráter hermético que é dado ao jurídico, isto é, somente os iniciados podem sobre ele se manifestar, não sendo admitido um comentário de um jornalista, apesar que os atores jurídicos podem se manifestar sobre qualquer assunto.

Essas chamadas de triunfo, ainda quando relatam reprovações, se mostram muitas vezes incapazes de indicar a importância do fracasso. E não se está a falar sobre o fracasso no certame e das lições que foram extraídas para a próxima vida. Não. Aqui há o silêncio da vida ser composta por fracassos e, mesmo com uma aprovação, não estarão longe da vida do exitoso. As perdas se dão em maior número na vida de qualquer pessoa. O vigor físico, os pais, os amores e os amigos vão sendo perdidos no curso da existência de cada um. Essa pedagogia da prosperidade justamente por não mostrar as perdas cria uma expectativa de vida “Tabajara”, isto é, seja aprovado em um concurso e, após a sua posse, tenha certeza de que os seus problemas acabaram. Quanta ingenuidade…

O concurso público como um troféu denota, também, uma concepção equivocada do que é república. Na verdade, mostra que esse conceito sofreu uma grave mutação ao chegar no Brasil. Se o Estado não é capaz de universalizar os direitos fundamentais e se vive uma cidadania não-inclusiva, não se busca a mobilização na rua e nas praças, mas sim a tranquilidade de um quarto para se estudar. Com a aprovação a luta pelo fortalecimento do SUS perderá qualquer sentido, já que algum penduricalho salarial arcará com o plano de saúde.

Assim, ao se rumar para a conclusão, depara-se com o pensamento de Erich Fromm e os dois principais modos de existência, isto é, o ter versus o ser:

A diferença entre ter e ser não é fundamentalmente uma questão de Oriente e Ocidente. É, isto sim, uma diferença entre uma sociedade centrada em torno de pessoas e outra centrada em torno de coisas. A orientação no sentido do ter é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida.”[iii]

Para a pedagogia da prosperidade, não importa o que foi construído como saber dentro de uma sala de aula – aliás, com o avanço de cursos à distância, fica mais clara a pouca importância ao ato de escutar o aluno. O que verdadeiramente importa são os números dos aprovados. De um lado, os adestrados poderão gozar de um novo patamar e esquecer as auguras da ralé. De outra banda, as aprovações reverterão em estatísticas necessárias para a retroalimentação desse modelo de aprendizado. Enquanto isso, restará o ostracismo ao conhecimento científico e a tutela jurisdicional se eternizará reféns de modelos acriticamente copiados.

É o retrato mais puro da sociedade brasileira: prosperidade para poucos que são sustentados por uma maioria que os vê em local inalcançável.


[i] Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=ZNjwx&aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996

[ii] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. .66.

[iii] FROMM, Erich. Ter ou ser? Rio de Janeiro: Zahar, 1977. pp. 38-39.

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