

Opinião
A pandemia do erro
O Brasil tem desconsiderado a ‘janela de oportunidades’ representada pelas novas ondas de Covid-19 nos países do Hemisfério


Desde que surgiu, a Covid-19 tem se caracterizado por um comportamento inusitado, que afronta consensos científicos e técnicos até então estabelecidos e exige de gestores, cientistas e profissionais de saúde um enorme esforço para atualizar e qualificar rapidamente as práticas destinadas ao cuidado dos enfermos e de saúde pública. Neste cenário de incertezas, duas tendências inaceitáveis se repetem no País desde fevereiro de 2020, quando se registrou o primeiro caso da doença.
A primeira é desconsiderar a “janela de oportunidades” que a antecipação da ocorrência dos eventos nos países do Hemisfério Norte em 30 a 45 dias nos proporciona. Se tivéssemos aproveitado para compreender melhor as tendências epidemiológicas e a eficácia das práticas de controle utilizadas para enfrentar a Covid-19, poderíamos ter poupado milhares de vidas no Brasil, antecipando a adoção de medidas exitosas ou descartando as ineficazes ou mesmo deletérias. A segunda é a reiterada postura do governo federal em protelar ou boicotar a adoção de medidas que poderiam proteger os brasileiros.
Ao final de novembro de 2021, quando se observou a explosão de casos pela Ômicron no Hemisfério Norte, era possível prever que, em 30 a 45 dias, sofreríamos o mesmo impacto. Foi possível identificar, a partir do que ocorria nesses países, que a Ômicron se portava como uma espécie de “Covid 2.0”, com carga viral extremamente alta, maior infectividade, períodos de incubação e de transmissão mais curtos e com menos sintomas, diferentes e que apareciam mais rápido.
A maior infectividade da variante resultou em graves problemas sanitários e sociais, com a elevação de afastamentos no trabalho e sobrecarga da rede de saúde, tanto pelo aumento de demanda como pela infecção e afastamento de grande número de profissionais de saúde.
Outras observações importantes já se enunciavam e poderiam ter sido utilizadas para orientar as ações no Brasil.
Percebeu-se muito rapidamente que a Ômicron afetava os menores de 18 anos e, em particular, as crianças menores, até então poupados. Por outro lado, ficou absolutamente comprovada a eficácia das vacinas, já que mais de 90% dos casos graves, que resultaram em internações e óbitos, ocorreram entre os não vacinados. A curva de óbitos, graças à cobertura vacinal, não acompanhou a tendência explosiva da curva de casos anteriores.
Diversas ações poderiam ter sido adotadas de forma ágil, coordenada, com base na simples observação do que ocorria em outros países. Quando a Ômicron chegou, estávamos novamente despreparados. Não tínhamos testes e insumos suficientes. A rede de saúde, desprevenida, operou sobrecarregada. Os leitos de UTI para Covid estavam desativados e tardaram a ser operacionalizados.
O mais grave é que perdemos a oportunidade de intensificar a cobertura vacinal. O ministro da Saúde lançou, no início de dezembro, uma absurda “consulta pública” para protelar a vacinação das crianças, já avalizada pelos especialistas e aprovada pela Anvisa.
Atualmente, 71,3% da população possui protocolo vacinal completo (dose única ou duas doses) e 10,3% recebeu uma dose. Isso significa que mais de 61 milhões de brasileiros, o que equivale à população da Argentina e do Chile, estão ainda vulneráveis. Esse grupo não se constitui apenas de negacionistas convictos, dispostos a morrer por uma causa absurda. A maioria é composta de crianças e idosos, muitos com comorbidades, pobres e com baixa escolaridade, que sem a adoção de uma vigorosa política de comunicação e educação em saúde fica refém de fake news ou desconsidera a importância de superar medos e receios em relação aos possíveis riscos e efeitos colaterais da vacina, ainda que esta seja uma poderosa arma de prevenção de casos graves e óbitos contra a Covid.
Mais do que proteção individual, o maior objetivo da imunização em massa é proporcionar a prevenção coletiva, que só ocorre quando se obtêm elevados níveis de cobertura vacinal . Isso deveria se constituir em uma obsessão nacional.
A falta de um líder comprometido à frente da Presidência da República e de um ministro da Saúde capaz de coordenar a resposta brasileira à Covid nos levou a essa tragédia, que ceifou mais de 640 mil vidas.
A onda da Ômicron começou a regredir também no Brasil, mas a pandemia de Covid-19 não acabou. O Coronavírus é recombinante e tem grande potencial de gerar novas variantes. Ainda é baixa e extremamente desigual a cobertura vacinal em escala global. Apenas 10,6% da população dos países pobres já recebeu pelo menos uma dose de vacina. Enquanto esse padrão de iniquidade persistir, não haverá segurança sanitária e novas variantes continuarão nos ameaçando. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A pandemia do erro”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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