Opinião

A onda da cooperação humanitária ainda não chegou aqui

No Brasil, sequer temos acesso à notificação compulsória dos infectados pelo coronavírus

Médico abraça colega na cerimônia de homenagem aos reforços de saúde enviados a Wuhan, China. (Foto: STR / AFP)
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“Pouco depois da destruição do Templo, em meio às perseguições de Adriano, foi realizada uma grande assembleia de rabinos doutores e se estabeleceram as duas regras fundamentais para a sobrevivência da fé dos hebreus, duas regras válidas até hoje. A primeira é que o estudo é mais importante que a observância das proibições e das leis, pois o conhecimento da Torá leva à obediência de suas sábias prescrições, enquanto a observância pura, sem a compreensão racional da origem das leis, não garante uma fé verdadeira, nascida da razão. A segunda regra… tem a ver com a vida e a morte. Quando é preciso morrer antes de ceder? perguntaram esses sábios há mais de 1.500 anos, e responderam para todos nós que somente em três situações: se o judeu for obrigado a adorar falsos ídolos, a cometer adultério ou a derramar sangue inocente. Mas todas as outras leis podem ser transgredidas em caso de perigo de morte, pois a vida é o mais sagrado…”.

Leonardo Padura, “Hereges”.

***

Estamos vivendo um momento de valorização da vida, em todo o mundo.

Às necropolíticas, contrapõem-se a cooperação humanitária internacional e políticas públicas voltadas à garantia de renda mínima para as famílias.

No Brasil, porém, sequer temos acesso à notificação compulsória dos infectados pelo coronavírus, sendo o exemplo mais escandaloso o do próprio presidente, ilegítimo, que se nega a apresentar o resultado do exame.

Entretanto, a saúde de um chefe de Estado, ainda que ilegítimo, não é assunto privado. Por que não temos legislação que disponha sobre o assunto?

Provavelmente, porque ainda somos uma sociedade bastante primitiva, do ponto de vista institucional, em que a violência ideológica conservadora se impõe sobre as noções civilizatórias de cidadania e direitos humanos.

Faltam-nos leituras, cultura cívica e conceituar a própria liberdade, que – em situações extremas como as que estamos vivendo – requer coragem, raciocínio e parâmetros que se aproximam muito das certezas mais vitais, éticas, universais.

Se repararmos nas políticas internacionais dos três países mais solidários nesta dramática quadra histórica, China, Rússia e Cuba, veremos que suas políticas externas guiam-se, em grande medida, por princípios humanistas.

No Brasil, temos por axioma que a política externa consiste na defesa dos interesses do país. Mas como melhor defendermos esses interesses? A curto, a médio ou a longo prazo?

O que a cooperação humanitária nos ensina é que nenhuma pessoa ou nação é uma ilha. O que fizermos hoje terá reflexos no futuro para o nosso país e nossas comunidades.

No passado, prestamos cooperação humanitária a Cuba e China. Atualmente, estamos (os esclarecidos estados do Nordeste) demandando essa cooperação, para o combate ao coronavírus, no país.

De fato, não somos ilhas, mas “ondas do mesmo mar”, como estamparam os chineses no material médico doado à Itália, para o combate ao coronavírus. Não cabe dúvida e, talvez, até o capitalismo mais selvagem acabe por refletir sobre o assunto. De que valem lojas luxuosas, fechadas? Companhias aéreas sem passageiros, hotéis, vazios, shopping centers, fechados?

Estados Unidos da América e Reino Unido, berços do neoliberalismo, adotaram a renda mínima emergencial, emulando o bolsa família brasileiro, que aqui, por obra macabra de Osmar Terra e Bolsonaro, é irresponsavelmente diminuído para os estados do Nordeste, por manterem políticas públicas voltadas à população e não contra ela, como o faz o desgoverno federal.

Pior, aqui, sequer a oposição – pelo menos o PT, o PCdoB e parte do PSOL – não protocolam o pedido de impeachment de uma pessoa que comete ao menos três crimes de responsabilidade por dia.

Com efeito, a agência de investimento Eurasia, uma das maiores do mundo, classificou Bolsonaro como o presidente que pior reagiu à crise do coronavírus, em todo o mundo.

Não poderia ser diferente: aos precursores do estado mínimo, a realidade contrapõe a verdade: somos cada vez mais uma única comunidade neste planeta terra, na qual o bem-estar de um não é questão individual, mas coletiva.

Com efeito, a China desponta desta crise como potência global, não mais limitada por formalismos discretos que ainda mantinha, receosa de assumir seu lugar.

A China que vemos nestes dias é uma potência desamarrada dos vínculos formais, com plena capacidade de julgamento e ação.

Trata-se de mudança epocal, no cenário internacional.

Com Elis Regina, para mim, a maior cantora que já tivemos e que teria completado 75 anos no dia 17 último, aprendi a identificar os momentos históricos e o que eles nos demandam: que o vírus do mal e o coronavírus terão de ser derrotados a um só tempo. Que o outono, estação preferida do maior e mais cristológico dos escritores, Dostoiévski, nos seja favorável.

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