Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A obra

Soube que dentro de um mês as obras vão começar. Bate-estaca, barulho de máquina cortando ferro, caminhões de cimento chegando e jogando massa

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O primeiro sintoma de que alguma coisa aconteceria ali, na esquina de Rua Scipião com Faustolo, foi a chegada de uma Chevrolet D-10, meio capenga, com os dizeres escritos à mão em vermelho na carroceria: Faz-se carretos.

Ela estacionou bem devagar, depois que o carona desceu e retirou os cones, colocados ali na noite anterior. Motorista e carona desceram e entraram na casa aparentemente já sem os moradores.

Saíram de lá com uma geladeira Gelomatic bem enferrujada, um fogão Cosmopolita com muito uso mas inteiraço e outras peças: uma cama patente desarmada, um criado-mudo sem gaveta, um abajur rococó, um conjunto estofado com os braços puídos.

Foi isso que vi, nos poucos minutos que fiquei ali parado observando a cerimônia do adeus.

Dias depois, quando ali passei novamente, já havia pedreiros retirando telhas, uma por uma, e colocando dentro de uma caçamba que foi colocada bem em frente àquela casinha.

Uma casinha de 1937, quando ali na Lapa só havia casinhas e fábricas. Uma de biscoito, me lembro bem, quando mudei pro bairro em 1993. O cheiro dos biscoitinhos saindo do forno se espalha pelas ruas do bairro, um cheirinho delicioso.

A casinha estava indo embora.

Em dois dias, foi abaixo. Os tijolos foram empilhados na calçada, as portas e janelas colocadas de lado, os canos amontoados, a casinha de repente virou um esqueleto fatiado e nada mais.

No dia seguinte, a esquina de Scipião com Faustolo era apenas um terreno vazio, cheio de pedras e poeira. Olhava para aquele vazio e me lembrava da casinha cinza que havia ali e seus dois moradores, já bem idosos, que muitas vezes estavam na janela regando os oito vasinhos com plantinhas comuns, só identificava uma espada de São Jorge, parada no tempo.

Uma semana depois, operários furaram o chão e instalaram num lugar estratégico um outdoor laranja, escrito assim: Breve aqui! No cartaz, poucas informações: 62 metros quadrados, duas garagens, área verde e área de lazer no rooftop, que fui procurar no Aurélio, uma laje metida a besta.

Houve festa com balões, birutas, salgadinhos e vinho branco para o lançamento e congratulação dos corretores, todos eles animadíssimos.

O lote ganhou uma cerca de alumínio laranja.

Soube que dentro de um mês as obras vão começar. Bate-estaca, barulho de máquina cortando ferro, caminhões de cimento chegando e jogando massa, armações de madeira subindo a olhos vistos.

Moro na cidade da Saudosa Maloca (Mais um dia nem quero me lembrar/Veio os homens com as ferramentas/O dono mando derruba/Peguemo toda nossas coisas/E fumos pro meio da rua/Apreciar a demolição/Que tristeza que eu sentia/Cada táuba que caia/Doía no coração) e na cidade de Sampa (E quem vende outro sonho feliz de cidade/Aprende depressa a chamar-te de realidade/Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso).

Não faz sentido reclamar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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