Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

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A nova obsessão de Trump

O presidente dos EUA se considera merecedor do Prêmio Nobel da Paz

A nova obsessão de Trump
A nova obsessão de Trump
Donald Trump – Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
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O presidente Donald Trump sugeriu mudar o nome do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, com seus 3 milhões de militares e bilhões em orçamento, e recuperar uma designação usada até os anos 1940: Departamento da Guerra. Linguagem é poder e Trump sabe disso. Não se trata apenas de um saudosismo de um populista. Para ele, os EUA estão, de fato, em guerra. Uma batalha para criar uma nova ordem mundial, redesenhar os eixos de poder no mundo e assegurar a retomada da posição de hegemonia norte-americana no século XXI.

Em apenas sete meses de governo, o republicano enviou barcos de guerra rumo à costa da Venezuela, deportou milhares de imigrantes, instaurou o medo e recebeu, com tapete vermelho, Vladimir ­Putin. Lidera ainda uma ofensiva contra a democracia brasileira, deu um cheque em branco para os crimes de Benjamin ­Netanyahu, retirou recursos do combate à pobreza no mundo, abandonou o acordo climático e abalou o funcionamento do Tribunal Penal Internacional. Mas, entre uma reunião e outra, encontrou tempo para fazer lobby em causa própria. Ele quer ser premiado com o Nobel da Paz.

Aos desavisados, o argumento mais parece piada de mau gosto. Segundo Trump, sua intervenção teria garantido a paz entre Israel e o Irã. Netanyahu chegou a enviar uma carta formal aos organizadores da premiação em defesa da candidatura do aliado ocupante da Casa Branca. Ninguém parece se lembrar, porém, que o cessar-fogo ocorreu depois de os EUA e Israel bombardearem o Irã. Além disso, os ataques foram realizados durante as negociações em torno de um acordo diplomático que teria trazido mais segurança ao Oriente Médio e servido ao fim da não proliferação nuclear. No fundo, um acordo nuclear com o Irã agora está mais distante do que nunca.

Trump também se acha responsável por garantir a paz entre a Índia e o Paquistão. Os indianos negam. Em Gaza, sugere um projeto de limpeza étnica e, na Rússia, pressiona a Ucrânia a abrir mão de territórios invadidos. O presidente dos EUA ameaçou tomar a Groenlândia e pressionou o Panamá, depois de insinuar que poderia retomar o canal estratégico que corta o país.

Não há paz negociada. Apenas uma paz imperialista e imposta. A paz pela força, como diz seu próprio lema. A paz dos autocratas.

O Nobel sempre foi um ato político. A escolha do comitê em Oslo mandou recados importantes ao mundo. Mas, em grande medida, a nomeação foi tomada de forma independente. Campanhas são discretas, frequentemente marcadas por gestos sutis e diplomáticos. Não no caso de Trump, que teria tentado influenciar a decisão por meio de conversas com o governo da Noruega. O republicano pediu um Nobel da Paz como quem reivindica um presente de aniversário, durante uma ligação, em julho, para o ministro das Finanças, Jens Stoltenberg, na qual, em princípio, o assunto eram as tarifas impostas por Washington.

Nos meios diplomáticos, as ironias não são poucas em relação ao lobby do norte-americano e despertou a lembrança de casos polêmicos. O maior deles, sem dúvida, foi a nomeação de Adolf Hitler para o prêmio em 1939. Naquele ano, parlamentares suecos indicaram o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain. O argumento era que Chamberlain havia garantido a paz mundial ao assinar o Acordo de Munique com Hitler, em setembro de 1938, quando a região ­tcheca de ­Sude­tenland foi entregue à Alemanha. Chamberlain foi o homem que “nesse momento perigoso salvou a nossa parte do mundo de uma terrível catástrofe”, dizia a carta de indicação. Três dias após a indicação do britânico, o parlamentar sueco e social-democrata Erik Brandt enviou uma carta ao comitê indicando Hitler. “O homem que, durante esse período perigoso, salvou a nossa parte do mundo dessa terrível catástrofe foi, sem dúvida, o grande líder do povo alemão. No momento crítico, ele voluntariamente não deixou as armas falarem, embora tivesse o poder de iniciar uma guerra mundial”, anotou.

A indicação gerou uma onda de protestos de comunistas, social-democratas e antifascistas liberais suecos. Brandt foi acusado de ser louco e suas palestras em diferentes associações acabaram canceladas. Dias depois, o deputado explicou que a sugestão do nome de Hitler tinha o objetivo de ser irônica. Para ele, o resultado do Acordo de Munique foi que as potências ocidentais apunhalaram a ­Tchecoslováquia pelas costas. Nem ­Chamberlain nem Hitler mereciam o Nobel.

Oito décadas depois, Trump não é irônico. Sabe que o prêmio seria uma espécie de chancela à sua política externa. Uma medalha para dar legitimidade ao seu esforço para fundar uma nova ordem internacional, da qual ele seria o único vencedor. •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A nova obsessão de Trump’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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