Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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A mudança da meta fiscal

Não vale a pena impressionar-se com grunhidos do mercado e da mídia, originados por análises de base frágil

A mudança da meta fiscal
A mudança da meta fiscal
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foto: Washington Costa/MF
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O ministro da Fazenda anunciou há pouco a revisão da meta de resultado primário para 2025, reduzindo-a de um superávit de 0,5% para déficit zero. Como seria de se esperar, o mercado e a mídia reagiram mal. Alega-se que o risco fiscal aumentou, com consequências negativas para a economia. Há base para isso?

A questão é complexa. O espaço não permite tratar aqui de todos os aspectos relevantes. Remeto à versão mais longa deste artigo, publicada na edição online de CartaCapital.

Um dos principais argumentos utilizados pelos críticos é que o afrouxamento da meta resultaria em aumento das taxas de juro de longo prazo. Este aumento provocaria, por sua vez, uma diminuição do crescimento econômico.

Em apertada síntese, como dizem os advogados, o argumento deles é o seguinte: a meta menos ambiciosa levaria a uma desconfiança do mercado, que passaria a cobrar juros mais altos para emprestar ao governo a prazos mais longos. O investimento e o consumo de duráveis, que dependem do custo do crédito, determinado pelos juros longos, seriam prejudicados e a economia cresceria menos. Isso contraria o argumento keynesiano tradicional, que frisa o aumento da demanda agregada resultante de uma política fiscal mais flexível, com resultado positivo sobre o crescimento econômico.

A abordagem não keynesiana preferida pelos economistas de mercado tem um aspecto paradoxal: a expansão fiscal (via diminuição do resultado primário) pode ser contracionista e, da mesma forma, a contração fiscal (aumento do primário) pode ser expansionista. A expansão contracionista ocorreria sempre que o impacto recessivo via juros sobrepujasse o impacto expansivo via demanda agregada.

Todo paradoxo é intelectualmente instigante. Instigante, mas não necessariamente verdadeiro. É o caso deste. O efeito recessivo é baseado em conjecturas difíceis de respaldar quantitativamente. Qual o impacto da mudança da meta sobre as percepções de risco do mercado e a sua demanda por títulos mais longos? E se houver aumento expressivo dos juros longos, qual o efeito sobre o investimento e o consumo de duráveis? Não há como dimensionar esses efeitos com segurança e de forma inequívoca.

Já o impacto expansivo, sobretudo de um aumento do gasto, é mais direto e se faz sentir mais rapidamente. A maior despesa pública, permitida pela meta mais modesta, resulta em expansão da demanda e gera aumento da produção, desde que exista alguma capacidade instalada ociosa e trabalhadores desempregados. Assim, é pouco provável que o efeito recessivo dos juros prevaleça sobre o impacto expansionista do gasto. Esse último é claro e direto; o primeiro é incerto e sujeito a conjecturas. O paradoxo desfaz-se na prática. A expansão fiscal tende a ser expansionista mesmo. E a contração fiscal, contracionista.

Ressalte-se que a meta um pouco mais modesta e mais realista aumenta a flexibilidade do governo. Abre algum espaço para continuar com a política de gradual­ aumento do salário mínimo em termos reais, para o fortalecimento das transferências sociais e para a recuperação do investimento público, que continua deprimido. Mesmo que a nova meta seja de difícil cumprimento, exigindo considerável disciplina e obstruindo políticas públicas que o governo considera prioritárias.

Seja como for, não vale a pena impressionar-se muito com ruídos e grunhidos do mercado e da mídia. Baseiam-se, em grande parte, em análises tendenciosas e de base técnica frágil.

Um comentário final sobre as hipocrisias do mercado e da mídia. A preocupação deles é realmente com o “risco fiscal”? Esse risco depende, claro, do tamanho do déficit e do aumento da dívida pública. O que nem sempre se frisa é que o déficit relevante não é o primário, mas o déficit ­total, que inclui também os juros da dívida. O aumento da dívida corresponde ao déficit total, que é, por definição, a soma do déficit primário (a diferença entre os gastos e as receitas não financeiras) e das despesas líquidas de juros (despesas financeiras brutas menos as receitas de juros).

Ora, isso significa que mesmo com um superávit primário ou déficit pequeno, a dívida pode crescer rapidamente se a despesa financeira líquida for pesada. É exatamente o que ocorre no Brasil em consequência da elevada taxa de juros praticada pelo Banco Central. A responsabilidade monetária desemboca em irresponsabilidade fiscal – paradoxo, este sim, válido. Em 2024, estima-se que a despesa líquida de juros será da ordem de 6,1% do PIB; o déficit primário, em torno de 0,7% do PIB. O déficit é sobretudo financeiro, com os juros respondendo por, aproximadamente, 90% do total!

Portanto, o principal fator de “risco fiscal” é a taxa de juros. Pergunta insincera: por que será que o mercado e a mídia nunca reclamam dela? •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A mudança da meta fiscal’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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