Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

A morte de Paulinha Abelha diz respeito a todas nós

Nessa sociedade de consumo, a pressão por corpos ‘perfeitos’ recai de maneira brutal sobre as mulheres. Não nos dão o direito de envelhecer. A juventude deve ser eterna

Créditos: Reprodução redes Sociais
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Nonato, meu tio por parte de mãe, nasceu no Maranhão. No início dos anos 1990, ele entrou na nossa família acompanhado de um sorriso largo e um coração generoso. Ele trouxe também aromas, temperos e sabores da culinária nordestina. Trouxe ainda sons e ritmos desconhecidos por nós. Foi na casa dele que ouvi a musicalidade da banda Calcinha Preta pela primeira vez. Pouco tempo depois, o grupo de forró eletrônico estourava nas paradas de sucesso, batendo ponto semanalmente nos programas do Faustão e do Gugu.

Faz tempo que eu não vejo o meu tio Nonato. Fazia tempo também que não ouvia falar do Calcinha Preta, até seus integrantes ganharem o noticiário em razão do quadro clínico de Paulinha Abelha, vocalista da banda. Não a conhecia. A verdade é que vivemos em bolhas que nos impedem de perceber e sentir a diversidade cultural do País. Internada em um hospital de Aracaju no dia 11 de fevereiro, a cantora sergipana teve seu estado de saúde agravado em pouco tempo. Boletins médicos davam conta de que Paulinha Abelha entrara em coma, passando a “respirar com suporte de aparelhos e necessitando de suporte renal dialítico”. Questionei o que teria levado a artista, que arrastava multidões, a um estado de saúde tão grave e de maneira repentina. Não havia muitas respostas.

Paulinha Abelha faleceu no dia 23 de fevereiro, aos 43 anos. Casada, não deixou filhos. Com base em uma biópsia e em um exame toxicológico, a cantora – cujo sobrenome artístico foi dado pelo pai – morreu em decorrência da debilidade de seu fígado, motivada “por um mix de substâncias tomadas para dormir, ficar alerta, ganhar definição muscular e, principalmente, emagrecer”, conforme noticiou o portal G1. Não se sabe, até agora, se os médicos que lhe receitaram esse coquetel de drogas serão investigados.

Mesmo sem conhecê-la, fui tomada por um sentimento de tristeza, daqueles que nos abatem quando perdemos pessoas próximas. Lamentei. Vi na morte precoce de Paulinha Abelha o reflexo de uma sociedade profundamente adoecida, em que, cada vez mais, há uma busca desenfreada para atingir “padrões de beleza” por meio de fórmulas e procedimentos estéticos que deformam corpos, rostos, almas – e, tal qual ocorreu com a jovem artista, muitas vezes levam pessoas à morte.

Nesta sociedade de consumo, a pressão por corpos “perfeitos” recai de maneira brutal sobre as mulheres. Não nos dão o direito de envelhecer. A juventude deve ser eterna. Em hipótese alguma, peitos e bundas podem cair ou ficar flácidos. A pele do rosto tem que estar sempre lisa e esticada, como se fôssemos bonecas de cera.

Precisamos estar sempre magras. Exemplo disso foi a cobrança em torno da aparência da cantora Marília Mendonça, mesmo após sua morte em um acidente de avião, em novembro do ano passado. Os compostos emagrecedores, que nos anos 1990 e 2000 eram anunciados aos montes por garotas-propaganda como Adriane Galisteu, Carla Perez, Scheila Carvalho, Eliana e Sabrina Sato, hoje chegam até nós por meio das influencers nos stories do Instagram. A todo custo, elas tentam nos convencer de que seus corpos magérrimos são resultado de shakes e gomas de mascar. Nas farmácias de manipulação e lojas de “produtos naturais”, os chás para “secar a barriga” são vendidos de forma desenfreada, sem qualquer restrição ou fiscalização. Onde está escrito que nós, mulheres, precisamos ter a “barriga seca”?

Em relação às negras, tudo é ainda mais perverso. A imposição de padrões estéticos é acompanhada pelo racismo. Desde os primeiros anos de vida, há toda uma engrenagem social para nos fazer acreditar que a brancura é a única forma de beleza possível. Assim, crescemos odiando nossos cabelos, nossos corpos, nossa pertença racial. Hoje em dia isso já não é tão comum, mas gerações inteiras de mulheres negras foram submetidas a ferros quentes e alisantes que provocavam queimaduras terríveis no couro cabeludo, na tentativa de alcançar “boa aparência”, o que era exigido sem qualquer pudor também nos anúncios de emprego.

Paulinha Abelha foi vitimada por essa sociedade que incute nas mulheres ideias de beleza que servem apenas para nos aprisionar, mutilar e alimentar o sistema capitalista. Revistas femininas, de fofoca, de celebridades, são verdadeiras porta-vozes desses absurdos. As indústrias farmacêuticas e de cosméticos têm lucros exorbitantes com a nossa insegurança e com a nossa dor. Segundo pesquisa divulgada pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética, em 2019, o Brasil ficou em segundo lugar no ranking de países com o maior número de procedimentos desse tipo.

No momento presente, o movimento feminista vê-se em meio a muitos desafios. Inclusive, alguns que achávamos terem sido superados, como a luta contra a carestia e as reivindicações pelo aumento do número de vagas nas creches, pautas dos anos 1980 que têm nos assombrado cada vez mais. Neste cenário que exige tantas batalhas e ações, o direito de ser quem somos, de celebrar os nossos corpos, deve estar no centro das nossas discussões.

A morte precoce e repentina de Paulinha Abelha não se trata de um caso isolado. Diz respeito a todas nós. Nesta sociedade adoecida, perversa, preconceituosa, machista e retrógada, que aprisiona e violenta mulheres, a próxima vítima pode ser eu, pode ser você.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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