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A minuta do golpe

O documento apreendido na casa do ex-ministro Anderson Torres visava apenas conferir aparência de legitimidade à tentativa de ruptura democrática

A minuta do golpe
A minuta do golpe
Anderson Torres e Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Na execução de uma tentativa de ruptura democrática, Jair Bolsonaro valeu-se da elaboração de um decreto. Nos termos da minuta apreendida na casa do ex-ministro Anderson Torres, o então presidente da República decretaria um Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, com o alegado objetivo de garantir a preservação ou, conforme ali constante, “o pronto restabelecimento da lisura e correção” do processo eleitoral de 2022.

Referido expediente nos leva a alertar que, desde a modernidade, há tentativas de conferir tratamento jurídico às hipóteses de suspensão de direitos em situações de emergência. O artigo 48 da Constituição de Weimar, por exemplo, permitia ao presidente do Reich adotar, sem o aval do Legislativo, medidas que julgasse necessárias para a restituição da ordem social.

Institutos dessa natureza são muitas vezes capturados por visões autoritárias. O Decreto Emergencial para a Defesa Contra o Comunismo, do Terceiro ­Reich, foi fundamentado no citado dispositivo. Ademais, rememoremos os Atos Institucionais da ditadura (1964-1985), concebidos com o mesmo propósito: valer-se do Direito para instrumentalizar a exceção.

É por essas e outras fatídicas ocorrências que somos levados a afirmar que a ascensão dos Estados autoritários do século XX ocorreu através de declarações jurídicas. Para Ernst Fraenkel, a emergência do por ele intitulado “Estado ­dual” pressupunha a coexistência de Estado-norma e de um Estado de prerrogativas: de um lado, normas relativas às relações privadas e ao sistema de justiça visavam, essencialmente, garantir previsibilidade e continuidade do sistema capitalista, ao passo que, no campo dos direitos fundamentais, prevalecia a exceção pela suspensão do Direito e da Constituição.

Há quem diga que o Estado de exceção seria uma forma de salvar a democracia contra ataques de adversários extremistas e situações em que a normalidade é incapaz de enfrentar. Carl Schmitt, por sua vez, passou a tratar o Estado de exceção como o fundamento maior da soberania. Escolher quem é amigo ou inimigo é próprio da política. Sob essa perspectiva, ao contrário da noção rousseauniana, segundo a qual o inimigo de um Estado é sempre outro Estado, o inimigo pode ser um dissidente, aquele que divide o povo.

Os Estados autoritários do século XX valem-se, nesses termos, de sedutoras narrativas de combate à figura do inimigo e de pretensa salvaguarda de ­determinados valores, isso tudo através de declarações jurídicas que visam conferir aparência de legitimidade.

Apresentado, brevemente, referido panorama histórico e teórico, voltemos ao caso do ex-presidente da República, que se valeu da elaboração de uma minuta de decreto de Estado de Defesa. Objetivava-se uma declaração jurídica, a qual, por obviedade, não seria capaz de legitimar o golpe de Estado.

O Estado de Defesa visa, nos termos da nossa Constituição, preservar ou restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social amea­çadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

O Estado de Sítio, por sua vez, pode ser decretado nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou da ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o Estado de Defesa e, ainda, diante de declaração de Estado de Guerra ou em razão de agressão armada estrangeira.

Veja-se, portanto, que a decretação do Estado de Defesa pressupõe o preenchimento de situações fáticas muito específicas e absolutamente inexistentes na ocasião, além de procedimentos formais próprios. Não pode haver dúvida quanto à necessidade do Estado de Defesa, assim como o de Sítio, esse último cabível para, em especial, enfrentar comoção grave de repercussão nacional e, ainda, declaração de guerra ou de agressão armada estrangeira.

A ordem pública e a paz social não estavam ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional, nem estávamos diante de calamidades de grandes proporções na natureza. Uma minuta de decreto de Estado de Defesa tinha, portanto, uma única função: romper com a democracia através de um golpe de Estado, isso tudo nos moldes operacionalizados por diversos regimes autoritários ao redor do mundo.

As possíveis consequências jurídicas do gravíssimo atentado à ordem democrática brasileira são, em tese, aquelas previstas no Capítulo “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”, consoante alterações promovidas pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, ao Código Penal, que criminalizam o golpe de Estado e a abolição violenta do Estado Democrático de Direito. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A minuta do golpe’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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