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A mentira tem pernas curtas, mas continua andando

Não há inocência, mas método da máquina bolsonarista em se valer de mentiras como política de governo

Marcelo Feller e Caio Coppola no programa da CNN Brasil. Foto: Reprodução
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Diz o ditado que a mentira tem pernas curtas. O Brasil recente, entretanto, vem provando que ela pode percorrer distâncias consideráveis independente da extensão de suas pernas.

Não devia assustar que, depois dos métodos adotados pelo bolsonarismo na eleição de 2018, a mentira tenha se tornado política governo. Não há uma linha estratégica que não a considere, seja para esconder dados – vide os referentes ao desmatamento e aos números da pandemia no Brasil –, seja para disseminar notícias falsas.

A crescente pilha de cadáveres nos leva a concluir que somente com uma boa dose de cinismo é possível abraçar o uso milagroso da cloroquina e da imunidade de rebanho como respostas eficientes à pandemia. Não interessa se, nas palavras do próprio ex-capitão, faltem evidências científicas de que funcionem. A mentira é capaz de percorrer maratonas sem demonstrar qualquer incômodo com os fatos.

Há quem ainda acredite que a inverdade tem seu reino absoluto nas vielas subterrâneas do Whatsapp. Talvez, se ainda estivéssemos nos tempos em que “os idiotas chegavam devagar e ficavam quietos”, diria Nelson Rodrigues. O guarda da esquina, a quem se dirigiram as preocupações do vice-ditador Pedro Aleixo na reunião em que se definiu o AI-5, empoderou-se também para ostentar sua miséria intelectual à luz do dia.

Um dos quadros de destaque da CNN Brasil diz respeito ao debate entre duas pessoas sobre temas sensíveis da política. O bolsonarismo, inevitavelmente, tem lugar cativo na agenda do programa. Enquanto um debatedor se propõe a criticá-lo, o outro sai em sua defesa. Caio Miranda, o defensor fixo, não tem nada em seu currículo que chame atenção, tendo acumulado alguma notoriedade nas redes e na rádio pelas piruetas com que, com ares de soberba, procura passar pano nas atrocidades presidenciais.

O Porta dos Fundos parodiou esse formato em uma esquete intitulada “Polêmica da Semana”. Nela, pesquisadores debatem com youtubers reacionários, milicianos e vereadores negacionistas. A forma com que estes se colocam, no estilo troll de internet, faz com que os estudiosos, pouco familiarizados com a linguagem de memes e correntes de Whatsapp, vejam-se impossibilitados de dar uma resposta que evidencie a anticiência, os achismos e as fake news propaladas por seus adversários.

 

Na última semana, um dos temas do programa da CNN foi a participação dos militares na política. Apesar do advogado criminalista Marcelo Feller, então contendor de Miranda na ocasião, demonstrar a clareza constitucional sobre a impossibilidade de militares da ativa exercerem atividades político-partidárias, o preposto do bolsonarismo insistiu que uma suposta competência técnica da caserna, sua elevação moral e a confiança que a população lhe deposita credenciaria seus membros ao exercício regular dos direitos políticos.

O debate seguiu com Miranda fazendo uma defesa laudatória das Forças Armadas contra os dizeres do ministro Gilmar Mendes de que, ao entrarem de corpo e alma no governo, seriam co-responsáveis pelo genocídio em curso no Brasil. O que se extrai de suas argumentações é a tese ginasial de que militares, apesar da expressa vedação de entrarem na política, são super-cidadãos, pois, caso sejam alvo das críticas próprias a essa arena, teriam a prerrogativa especial de provocar o Ministério Público para que seus desafetos – no caso, o ministro Gilmar – sejam afastados dos cargos que eventualmente ocupem.

A necessidade de expor a carteirinha de fã parecia engolir a de mostrar alguma coerência. Confrontado por mais de uma vez com o fato de que o ministro interino da saúde, Eduardo Pazuello, é general da ativa e que a Constituição não dá espaço para outra interpretação que não a da impossibilidade de estar onde está, Miranda se viu forçado a fazer uma concessão cínica: somente na hipótese de Pazuello deixar a interinidade, passando a ser o titular da pasta, é que tais críticas passariam a ter sentido. Sua interinidade já dura mais de dois meses.

Não há inocência. Há método. Miranda nega inclusive o potencial influenciador que Bolsonaro exerce sobre seus seguidores quando comparece a manifestações e sai às ruas sem tomar precauções como o uso de máscara. Uma vez que a mentira, o cinismo e a desfaçatez compõem a argamassa ideológica responsável por consolidar o quarto da população que está com o presidente não importa o que acontecer, agir segundo esses parâmetros se torna uma estratégica extremamente eficaz para manter a coesão do rebanho.

Não é que a mentira tenha deixado de ter pernas curtas. Foi a verdade que parece ter perdido a eficácia em contribuir para interromper seu trajeto.

Repetir os padrões político-eleitorais que duraram de 1985 a 2018 só servirá para presenteá-la com mais alguns quilômetros. O deboche presente na exaustão com que Bolsonaro repete o versículo bíblico segundo o qual “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” dá a dimensão do trabalho árduo de uma reinvenção tática que, mantendo o compromisso com a verdade factual, identifique os meios mais eficientes de combater a mentira.

Apesar da mentira, enquanto linha política, ainda ter algumas milhas para percorrer, suas pernas continuam curtas e seu ritmo previsível. As investigações na CPMI da fake news e no STF vêm desvendando elementos suficientes para o desnude da fonte de seus anabolizantes, cuja desativação dependerá também da disposição da sociedade em enxovalhar o programa ultraliberal bolsonarista e substitui-lo por outro que contemple as necessidades do povo brasileiro.

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