Vilma Reis

Socióloga, ativista e ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia

Opinião

A matança dos negros

O assassinato de três jovens na Gamboa de Baixo, em Salvador, mostra, mais uma vez, que é preciso afirmar os direitos das juventudes criminalizadas

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A carne mais barata do mercado é a carne negra, hino da resistência cantado por Elza ­Soares, nos lembra todos os dias que precisamos resistir para não morrermos nos becos da tristeza. Mas esta poesia também nos lembra que vivenciamos uma matança de jovens negros e negras, indígenas, ciganos e de tantos outros grupos secularmente agredidos no Brasil.

No dia 1º de março, chovia muito em Salvador e, ao amanhecer, surgiu a notícia de mais uma madrugada de terror em uma comunidade centenária de pescadores, no coração do Centro Antigo, na Gamboa de Baixo. A Polícia Militar da Bahia havia assassinado três jovens negros, com 16, 20 e 22 anos de idade.

No Brasil todo, ocorrem chacinas, prisões arbitrárias, abusos e humilhações aos jovens, às suas mães e avós, em geral nos becos e vielas dos territórios habitados por populações negras e empobrecidas. E a comunidade centenária não foi poupada. Mesmo vivendo no centro de Salvador, Patrick, Alexandre e Cleverson tiveram as vidas ceifadas.

Por isso, faço desta coluna um ato-manifesto, com propostas para pensarmos e mudarmos as políticas de segurança pública no Brasil. Precisamos nos pautar pelos direitos humanos e romper com um tabu da administração pública brasileira, tratado como preceito: de que essas políticas só podem ser alteradas a partir do governo federal. Entendo, ao contrário, que precisamos agir nas gestões públicas municipais para acolher as infâncias e juventudes.

Para mudar o quadro atual de violações praticadas pelas Guardas Civis Municipais é preciso, em primeiro lugar, afirmar os direitos das juventudes criminalizadas, respondendo com políticas sociais de acolhimento e inserção sociocultural. Isto se faz com a criação de centros comunitários nas regiões mais empobrecidas e criminalizadas das cidades. Esses espaços de convivência devem prover acesso a bibliotecas, internet livre e condições para a impressão de materiais individuais e coletivos. Devem, além disso, ter salas de cinema, dança, música.

Esse projeto poderia ser a retomada do Programa Juventude Negra Viva, elaborado a muitas mãos durante o governo Dilma, sob a coordenação da ministra Luiza Bairros, na Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) e na Secretaria Nacional de Juventude. Esse foi um primeiro momento na elaboração de uma política focada nas juventudes desumanizadas, criminalizadas e assassinadas pelas forças públicas e pelos grupos paramilitares tolerados pelo Estado.

Outra medida urgente para conter a matança da juventude no Brasil é a implementação do programa de instalação das câmeras nos uniformes dos policiais de todos os estados. Tendo em vista que a Bahia é o estado que, vergonhosamente, mais encarcera pessoas a partir do reconhecimento facial, nos causa espécie que não use ainda esse instrumento para fortalecer as políticas de investigação e, lamentavelmente, siga sendo esta polícia que atira para matar. Portanto, nossa recomendação que o governo da Bahia agilize com a criação e instalação desse programa o quanto antes, pois, com esse mecanismo, talvez as mães dos três jovens não estivessem agora chorando a dor do assassinato dos seus filhos. A implementação dessa política no estado de São Paulo tem produzido resultados muito impactantes na preservação da vida de civis.

Ainda no sentido de buscar mudanças a partir dos lugares onde vivemos, os estados precisam fortalecer e ampliar as Defensorias Públicas em cada comarca. Isso é importante porque onde a Defensoria Pública chega é possível diminuir a criminalização dos jovens, uma vez que os mesmos passam a acessar mais mecanismos de defesa e a ampliar a possibilidade de, por exemplo, sair em liberdade numa audiência de custódia.

A nossa resistência organizada em cada uma das comunidades, como Gamboa de Baixo e o Morro do Salgueiro, precisa muito da presença consequente de Estado, com políticas públicas em escala e focadas em resolver problemas concretos a partir de medidas de equidade racial, de gênero, geração, territorialidades e justiça socioambiental. Deve-se acolher a partir da escuta qualificada.

Este modelo aqui desenhado nada tem a ver com balas, prisões ilegais, humilhações e assassinatos decorrentes do permanente terror de Estado. A esta violência nós resistimos e respondemos com uma luta potente no meio das ruas, como fizemos na segunda-feira 7, tomando a Avenida do Contorno, em Salvador, para gritar por vida e liberdade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A matança dos negros”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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