Justiça

A mais nova invenção judicial: a besta-fera de Benfica

Tratados sob a mais degradante forma, acusados de crime são animalizados em Central de Custódia do Rio de Janeiro

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A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada por Mem de Sá em 1565, em meio a luta travada com os franceses que ocupavam a ilha de Villegagnon. Adquiriu fama mundial pelas suas belezas naturais, Maracanã, Carnaval, Cristo Redentor e o caráter acolhedor do seu povo. A notoriedade agora se dá por outra razão, pois nem o melhor ficcionista poderia imaginar que uma nova espécime seria encontrada unicamente nesse mais que centenário município: a besta-fera de Benfica.

A besta-fera é um ser mítico do folclore brasileiro. Trata-se é uma criatura comedora de gente e que tem um rugido assustador. No sentido figurado é usado para se referir a uma pessoa cruel e sem coração. Mas antes de descrever esses descalços animalizados e oficializar o convite para as mais diversas pessoas os verem, é oportuno localizar onde são encontrados. Benfica é um bairro carioca que, certamente, já viveu tempos mais felizes, ainda mais quando a nobreza estava sediada na sua vizinhança.

Porém, os anos passaram e uma triste realidade se instalou. O imperador foi mandado embora por uma quartelada. O Rio de Janeiro deixou de ser a capital da república e encarou um processo de encolhimento econômico e político. Benfica não passou imune a esse processo.

Atualmente, dessa localidade somente três locais são lembrados pela população: o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – o Pedregulho, a CADEG e a Cadeia Pública José Frederico Marques. Como consequência das espetaculosas operações de “combate à corrupção”, a unidade prisional acabou adquirindo maior renome: afinal, ex-governadores e importantes agentes políticos já conheceram as celas da “Cadeia de Benfica”.

O que talvez pouca gente saiba – e se aproxima o momento da descrição do ser que foi recentemente descoberto – é que nesta unidade prisional se localiza a Central de Audiência de Custódia da Capital, que tem competência para apreciar as prisões em flagrante de mais de 40 comarcas. A sua inauguração e demais obras sempre se marcaram por pomposas cerimônias, mesmo quando a realidade indicasse que algo não deveria permitir tanta festa e regozijo, vide o noticiado em destacado veículo da mídia:

Placa de teto de parlatório recém-reformado cai, e TJRJ afirma que a estrutura foi derrubada por gato.

Obra foi entregue há oito dias, em cerimônia da qual participaram autoridades do poder judiciário. Sala serve para que presos sejam entrevistados por defensores públicos e advogados de defesa.

(…)

A entrega da obra ocorreu durante cerimônia no dia 14 deste mês. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Claudio Mello Tavares, e outras autoridades que integram o poder judiciário participaram da solenidade.”[1]

A besta-fera, o novo ser descoberto e enxergado apenas por defensores (públicos e privados), somente surge nas salas de audiência. Apesar de a Central de Audiência de Custódia da Capital, tal como já apontado, se localizar em uma unidade prisional sem histórico de fuga, todas as pessoas apresentadas à autoridade judicial são mantidas algemadas no curso da audiência de custódia e isso se dá independentemente da suposta infração que teria ensejado o seu aprisionamento.

A besta-fera representa um perigo enorme para magistrados, membros do Ministério Público e auxiliares do Poder Judiciário; daí, devem ser contidos com grilhões, físicos e da hipocrisia.

Pena, de acordo com os criadores da fera, que as algemas não podem suprimir o odor desse ser vivo. De acordo com essa lógica, aquele ambiente, a sala de audiência, possui poderes mágicos que transforma os mais diversos seres humanos em figuras animalescas e bestiais e que, por isso, devem ser controlados a qualquer custo.

Contudo, há um sério problema no tratamento conferido à besta-fera de Benfica, pois o enunciado nº 11 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal deveria impedir esse agir:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

Diante da inversão da lógica contida na citada decisão sumulada do STF, o certo seria denomina-la como Súmula Vacilante, pois é simplesmente ignorada pelos aplicadores do Código de Processo Penal de Benfica (CPPB). A título ilustrativo, extrai-se a realidade ocorrida no dia 13 de janeiro de 2020, quando 73 (setenta e três) pessoas foram apresentadas à autoridade judicial e todas elas foram mantidas algemadas. Caso os números não convençam os meus poucos leitores, colaciono a seguinte fotografia tirada no momento de contenção desse novo ser tido como atávico pelos operadores do CPPB:

Cenas como essas são comuns e aceitas no Código de Processo Penal de Benfica, vigente apenas na dantesca Central de Audiência de Custódia do Rio de Janeiro.

Se não bastasse a violação a Súmula Vinculante nº 11 e todo um mosaico normativo que impede a submissão da pessoa a tratamento degradante, a imposição compulsória e generalizada de algemas é a materialização do elitista pensamento da burocracia brasileira, vale dizer, que se acha melhor que o restante da população e somente é capaz mostrar uma valentia com quem não pode esboçar qualquer reação. Se o preso é uma ameaça a todos, por que ele divide celas superlotadas? Aliás, por que não usa algemas no presídio? A preocupação com a segurança é, portanto, seletiva e, o pior, hipócrita.

A besta-fera de Benfica é o retrato do processo penal brasileiro: desumano, seletivo, violador de normas jurídicas e incapaz de efetivar o Texto Constitucional. Nada disso é novo, a única inovação que marca esse novo ser de Benfica é que se perdeu a vergonha em se estigmatizar as pessoas. Segundo essa inconstitucional forma de pensar, se uma pessoa foi apresentada à autoridade judicial é sinal de que algo de errado foi feito e como castigo, pelo menos, ficará com a lembrança dos grilhões na sala de audiência.

Há de se lutar pela extinção dessa figura judicial e, enquanto sobreviver, os que são capazes de enxergá-la têm o dever de lutar pelo seu fim.


[1] Fonte: G1

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