Justiça

A luta pelo aperfeiçoamento e expansão das políticas de ações afirmativas continua

Defensorias públicas deram um passo importante para a pluralidade nos próximos concursos públicos

Reunião de divulgação da Carta da Bahia. Foto: ANADEP/Flickr
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O ano de 2022 será a oportunidade para o aprofundamento das discussões acerca das ações afirmativas no país, sendo o marco estabelecido pela Lei Federal nº 12.711/2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades e instituições federais de ensino, para se promover a revisão da política de cotas que confere acesso as estudantes pretos, pardos e indígenas.

Estamos na Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (2015 a 2024), com os lemas “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”,  e que determina aos Estados-membros que tomem medidas concretas e práticas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata enfrentados por afrodescendentes, tendo em conta que o fenômeno complexo do racismo produz formas múltiplas, agravadas e inter-relacionadas de discriminação baseadas em outras características como idade, gênero, idioma, religião, opiniões relacionadas à política ou não, origem social, propriedades, deficiências, nascimento ou outras condições.

O desafio se dirige para a necessidade de se adotar ou aprimorar leis antidiscriminatórias e garantir sua efetividade, uma vez que as conquistas ainda são muito tímidas. Registre-se que conforme o significado jurídico do termo, revisão, é o exame minucioso de um projeto, lei etc. com o objetivo de corrigir possíveis erros.”

E não é por outro motivo que já observa-se, aqui e acolá, tentativas ardilosas de se requentar discussões, mitos, e ideias apoiadas em sensos comuns, a muito já desmistificados, com o objetivo de ameaçar direitos já constituídos pela políticas de cotas.

Importante resgatar os resultados do I Congresso de Cultura Negra das Américas em Cali, 1977, cujo objetivo foi promover uma reflexão feita por afro-americanos, e sobre estes com a finalidade de superar entraves e barreiras políticas, culturais, econômicas e religiosas, impostas pelos colonizadores e ainda mantidas, e teve como tema central a “A realidade social e cultural dos afro-americanos”.

Dentre as conclusões, registrou-se que “a atitude adotada por intelectuais de orientações políticas específicas que negam a existência da questão racial como elemento que participa na existência de problemas sociais, sustentando que a situação é entre ricos e pobres, oprimidos e opressores, é uma forma de discriminação racial.”

É um apontamento importante para a compreensão de que estratégias que visam relegar o problema da desigualdade social brasileira, a uma questão exclusivamente, de classe, não são novidade.

Assim opera o racismo por denegação, tão bem delineado por intelectuais brasileiras, como Lélia Gonzalez, que o conceituam como disfarçado, porque herda um sistema de hierarquia baseada em uma quase natural superioridade (branca e patriarcal) ante as populações escravizadas (negros e indígenas), oriundas de um passado histórico de violento controle social e político, sustentada por ideologias de classificação social, tendo como pano de fundo a questão racial e sexual.

Neste emaranhado prevalecem as teorias da miscigenação, da assimilação e da “democracia racial”, e são essas tecnologias de opressão, alguns dos pilares que permitem a construção e manutenção de sociedades racialmente estratificadas como a brasileira. Por tal motivo dispensam formas abertas de segregação, uma vez que essas hierarquias operam para garantir à branquitude, o status de grupo dominante nos espaços de prestígio da sociedade, chegando às vezes a não parecer violência, mas verdadeira superioridade, como conclui Lélia.

Fachada da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Foto: DPE/RJ

Como bem delineou outro grande intérprete do Brasil, Abdias Nascimento, o esquema de relações raciais no país baseia-se na supremacia do descendente branco europeu que se autoconstituiu numa pretensa elite, um supremacismo tão bem estruturado a ponto de ter podido permanecer livre de um desafio radical durante todas as transformações sociopolíticas pelas quais tem passado a nação.

É essa casta que, quando interessa, “confunde” direitos com privilégios, e resiste as transformações sociais que vem sendo construídas para desmobilizar estruturas racistas, e que por isso na menor chance ensaia investidas para dizimar as conquistas já estabelecidas.

Somente uma perversa e violenta hipocrisia pode manter uma sociedade, que sistematicamente confere cidadania para a população branca ao passo que produz o extermínio de Moïses, Kathlens, Migueis e outros tantos dilacerantes “casos isolados”, habituada a desvirtuar os debates que buscam a plena e efetiva equidade racial.

O esforço institucional deve se manter no aperfeiçoamento das políticas de cotas, enquanto mecanismo para eliminar as barreiras, engendradas por uma sociedade que, enquanto opera dinâmicas de uma necropolítica, se apoia em mitos para de maneira sistêmica alijar dos espaços de prestígio as pessoas negras.

A Carta da Bahia

Nessa passo, foi no último dia 16 de fevereiro, em Salvador – BA, que se apresentou uma das perspectivas que devem permear as discussões. Irmanadas, todas as Defensorias Públicas do País, publicaram um documento batizado Carta Da Bahia – Defensorias Públicas Estaduais Antirracistas: Pelo Avanço Da Política Afirmativa De Cotas Raciais.

Carta da Bahia

Nesta carta, firmou-se uma série de compromissos com a finalidade de garantir a “superação do paradigma antidemocrático que ainda vige e rege as instituições do sistema de justiça”, fruto do racismo que vigora no Sistema de Justiça brasileiro, na medida que se omite do compromisso de trazer para a centralidade do debate, a questão racial.

Essa articulação nacional é um desdobramento da campanha temática da ANADEP “Racismo se combate em todo lugar: Defensoras e Defensores Públicos pela equidade racial.” A iniciativa visou provocar a sociedade, o Estado e a imprensa para que o antirracismo seja uma luta de todas e todos, e por óbvio, trouxe a reboque muitas reflexões internas, e vem desencadeando tomadas de decisões administrativas no sentido de dar maior efetividade ao combate do racismo nos seio das Defensorias Públicas de todo o país.

Um sistema de justiça, que tem o poder de movimentar as estruturas, mas não reflete a diversidade racial da sociedade em sua composição, é um dado visível de desigualdade e manutenção do “status quo”.

E se, passada uma década da implementação da política de cotas, os donos do poder permanecem os mesmos, é preciso seguir e avançar na direção da aguardada equidade racial.

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