

Opinião
A larga tradição de crimes montados pela extrema-direita na Europa
Não cabe fazer ilações quanto às investigações a respeito do atentado na sinagoga francesa, mas deixar de considerar os antecedentes históricos tampouco seria prudente


“A escritora Christiane Singer relata uma explicação curiosa que um amigo antropólogo lhe disse haver escutado de um aborígene: ‘Não, senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações” – José Tolentino Mendonça
Como combinar essa linda interpretação da crise como oportunidade e combiná-la com uma tendência – que parece intrínseca à história – de repetir-se?
Talvez essa possa ser uma pergunta pertinente para todos os que buscam entender os contextos histórico-sociais em que vivemos.
Por exemplo, no fim de semana, ocorreu atentado a uma sinagoga na França.
As imagens obtidas pelas câmeras de segurança mostram um homem envolvido em bandeira da Palestina, com uma kfia cobrindo-lhe a cabeça e o rosto, uma arma na cintura e uma garrafa de líquido aparentemente inflamável em uma das mãos.
A imprensa francesa não parece ter refletido fora da possibilidade de o ato terrorista ter tido outro móvel que o antissemitismo.
Entretanto, a Europa tem uma larga tradição de crimes montados pela extrema-direita.
Esclarecer o que de fato aconteceu caberá à polícia francesa, a qual, posteriormente, trocou tiros com o suspeito, que resultou hospitalizado, sendo um argelino com histórico de criminalidade patrimonial, mas sem aparentes vínculos terroristas.
Entretanto, não caberia à imprensa indagar se essa – uma hipótese apenas – não poderia ser mais uma repetição da história?
Vejamos: a esquerda venceu as eleições legislativas, mas ainda não foi chamada pelo presidente francês a formar o governo.
Uma parte importante da direita diz que não aceitará um governo da Frente Nacional, pois nela se encontra o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélanchon, que os conservadores classificam de antissemita, por ter protestado contra o genocídio que a extrema-direita israelense perpetra em Gaza.
Vale notar que o referido atentado à sinagoga ocorreu poucas horas após Emmanuel Macron ter recebido os representantes da esquerda vencedora, para consultas sobre a formação do novo governo.
Sempre reiterando que caberá à polícia francesa esclarecer quem cometeu – e por que – o referido atentado, vale recordar que o incêndio do Reichstag, o parlamento alemão, pelos nazistas, imputando-o, porém, aos comunistas, foi o pretexto criado pela extremadireita para o golpe de estado que levou Hitler ao poder.
A mesma estratégia de terror foi adotada pela extremadireita italiana, nos anos 70, para impedir a aliança entre a esquerda da Democracia Cristã e o Partido Comunista, da qual fizeram parte a explosão da estação ferroviária de Bolonha, com dezenas de vítimas fatais, e o sequestro, com assassinato, do próprio primeiro-ministro Aldo Moro.
Repetindo, não cabe fazer ilações quanto às investigações criminais que ocorrem atualmente a respeito do atentado na sinagoga francesa, mas deixar de considerar esses antecedentes históricos tampouco seria prudente, tendo em vista a gravidade e as repercussões que acarretaram ao conjunto das nações (6 milhões de judeus mortos; 30, de russos; além de milhões de outros prisioneiros políticos cremados vivos nos campos de extermínio nazistas).
Em Pai nosso que estais na terra (editora Paulinas), o cardeal português José Tolentino Mendonça relata:
“Um dos textos mais impressionantes sobre a necessidade inapagável da escuta é o conto ‘Tristeza’, de Tchékov. A história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, ninguém disponível para o amparar. ‘Precisa contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu…Precisa descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia…Precisa falar sobre ela também…’, mas ninguém o ouve. O cocheiro volta-se, então, para o seu cavalo e, enquanto lhe dá aveia, começa a expor-lhe, num dorido monólogo, tudo o que viveu. E as últimas palavras do conto são estas: ‘O cavalo foi mastigando, enquanto parecia escutar, pois soprava na mão do seu dono…Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo”.
No entanto, se o Ocidente é tão restrito na escuta, vemos que do Oriente vêm bons sinais (aqui, também a história se repete, com o arquétipo dos Reis Magos).
A mediação que o primeiro-ministro da Índia está tentando, para que se encerre o conflito na Ucrânia, é promissora e demonstra uma agilidade e vitalidade de que as diplomacias ocidentais escasseiam.
Retomando a lição do cocheiro relatada por Tchékov, como retomar o reto caminho sem escutar?
Na mesma obra do cardeal Tolentino, antes citada, ele discorre:
“…há um ensaio da antropóloga Dean Falk, ‘Língua mãe. Cuidados maternos e origens da linguagem’, em que ela propõe que cada um de nós…começa a utilizar os sons linguísticos não propriamente para comunicar ou pensar, mas para permanecer em contato com aquelas e aqueles que tomam conta de nós. As palavras são a verbalização do desejo que sentimos do outro em nós. No fundo, o que quer que digamos dizemo-lo para avizinhar ou reter o outro perto de nós, para retardar ou desmentir a sua ausência, para dizer quanto ele é para nós. A linguagem humana é, por isso, uma consequência espantosa da necessidade de relação”.
Por fim, fazendo uma belíssima síntese dos austríacos, filósofo e poeta respectivamente, Ludwig Wittgenstein e Rainer Maria Rilke, o cardeal português nos propõe esta verdade, enunciada por Rilke: “As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou”.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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