

Opinião
A justiça ainda incompleta para Marielle
A condenação dos executores é um passo, mas a verdadeira justiça só será feita quando os mandantes forem identificados e responsabilizados


Escrever sobre Marielle Franco é revisitar uma ferida profunda na história democrática brasileira. Trata-se de uma cicatriz ainda aberta, que testemunha o silêncio em torno dos verdadeiros mandantes de sua execução. A brutalidade da morte de Marielle não representa apenas uma tragédia pessoal; reflete também a vulnerabilidade daqueles que ousam desafiar os alicerces de um sistema que, sob camadas de aparente legalidade, permite a continuidade de práticas violentas e excludentes, especialmente contra mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+.
A condenação de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, envolvidos no assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes, é um marco na responsabilização dos executores. No entanto, a questão fulcral permanece: quem ordenou a morte de Marielle Franco? Este é o ponto central de uma justiça que ainda se nega a fornecer respostas completas. A democracia perde sua essência quando falha em esclarecer os motivos e mandantes por trás de crimes que, longe de serem isolados, refletem um histórico de violência política no país.
A trajetória de Marielle Franco sempre foi marcada por sua defesa incansável dos direitos humanos e pela busca por uma sociedade mais justa e inclusiva. Sua militância representava uma ameaça para os que se beneficiam da exclusão racial, de gênero e de classe que permeia as estruturas de poder. Sua execução escancara o ódio dirigido a corpos insurgentes, que desafiam o racismo, o machismo e a LGBTfobia institucionalizados.
No Rio de Janeiro, essa violência contra mulheres negras na política é especialmente presente: a conivência entre milícias e Estado cria uma letalidade que ultrapassa as execuções políticas e atinge o cotidiano das comunidades. As milícias, atuando como forças paraestatais, impõem um controle que se assemelha a um Estado paralelo, no qual práticas como o “jogo do bicho” e o domínio territorial perpetuam um ciclo de violência e silêncio. A permissividade em relação às milícias nas periferias cariocas evidencia a falência do Estado em garantir segurança e dignidade, ao mesmo tempo em que mantém uma estrutura informal e seletiva de justiça que pune uns e protege outros.
O julgamento dos assassinos de Marielle e Anderson ressalta questões de direito penal e processual, além de incluir o impacto dos crimes de ódio e a aplicação de penas em casos de motivação política. Na condenação de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, foram aplicadas qualificadoras de homicídio doloso, em razão da premeditação e do uso de recurso que impossibilitou a defesa das vítimas – elementos que, segundo a jurisprudência brasileira, agravam a pena. Essa decisão é um marco no combate à violência política e ao feminicídio, reforçando a necessidade de respostas firmes do sistema judiciário em casos que envolvem defensores de direitos humanos. O veredito representa uma resposta parcial da justiça brasileira, mas aponta a urgência de identificar os mandantes, respeitando o direito à verdade e à justiça para as famílias e a sociedade.
A complexidade do caso também reflete os desafios para investigar as conexões entre milícias, poder público e o controle do tráfico de influências, que historicamente favorecem a impunidade no Brasil. A atuação de milicianos em áreas urbanas, especialmente no Rio de Janeiro, expõe questões sobre a eficácia das políticas de segurança pública e a conivência de agentes estatais com facções criminosas. Além disso, a pressão da opinião pública e do acompanhamento social reforça a importância da transparência e da imparcialidade judicial em um caso com tamanha relevância política e simbólica. O caso Marielle Franco estabelece, assim, um precedente jurídico na luta contra a violência política e a favor de respostas institucionais robustas frente a crimes de extrema gravidade, reafirmando a promessa de que a justiça pode – e deve – alcançar todos os envolvidos, dos executores aos mandantes.
O caso de Marielle reverbera em outras vozes silenciadas e clama por uma justiça que vá além da punição dos autores materiais, expondo os interesses e mandantes envolvidos. Em vida, Marielle questionava: “Quantos mais precisarão morrer para que essa guerra acabe?” A resposta parece residir em um sistema que necessita reavaliação e reforma, com o enfrentamento da impunidade e o reconhecimento da gravidade da violência política que atinge especialmente as populações mais marginalizadas.
A presença de Marinete, mãe de Marielle, simboliza a resistência de inúmeras mulheres que enfrentam a dor e a esperança de justiça. Contudo, a demora nas respostas e na responsabilização integral abala a confiança pública na justiça. Justiça tardia é, afinal, justiça negada. Esse processo de reconhecimento e reparação precisa honrar a memória de Marielle como símbolo de resistência, indo além das sanções penais e exigindo transparência, verdade e reparação para restaurar a confiança nas instituições democráticas.
A vida de Marielle foi violentamente interrompida, mas suas palavras, “Não serei interrompida”, reverberam diariamente em sua luta. Embora Marielle tenha sido silenciada, a cada uma de nós que parte, outra surge, em um ciclo inquebrável de busca por justiça e dignidade. Essa promessa de resistência é o legado de Marielle Franco, um compromisso de transformação que não se interrompe.
O Brasil enfrenta um desafio ético e jurídico ao honrar o legado de Marielle Franco, buscando respostas que protejam aqueles que, como ela, lutam por uma sociedade mais justa. O futuro da democracia brasileira depende de que se faça justiça não apenas para Marielle, mas para todos os que sua luta representava. Em sua ausência, resta-nos a força de sua memória como um compromisso renovado com a transformação social — um compromisso que, como Marielle nos ensinou, exige persistência, coragem e, sobretudo, ação.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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