Riad Younes

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Médico, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Medicina da USP.

Opinião

A inflação das doenças

Está cada vez mais difícil saber o que é ser saudável. Todos os dias surgem novas “doenças”. O que era considerado normal, ou um pouco desconfortável, ganha progressivamente o rótulo de problema de saúde, é classificado como doença e, automaticamente, ganha possíveis tratamentos. Um artigo […]

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Está cada vez mais difícil saber o que é ser saudável. Todos os dias surgem novas “doenças”. O que era considerado normal, ou um pouco desconfortável, ganha progressivamente o rótulo de problema de saúde, é classificado como doença e, automaticamente, ganha possíveis tratamentos.

Um artigo recentemente publicado pelos jornalistas John Fauber, do ­Milwaukee Journal Sentinel, e Kristina Fiore, do ­MedPage Today, traz o alerta para médicos e leigos sobre essa tendência preocupante. O fenômeno tem impacto direto na medicina e na saúde dos brasileiros. Conversamos sobre isso com o doutor Claudio Maierovitch, médico sanitarista da Fiocruz de Brasília e ex-presidente da Anvisa.

CartaCapital: O que este artigo traz que possa chamar a tenção dos médicos e da população?
Claudio Maierovitch: O artigo aborda o que chamamos de medicalização, que vem se tornando um problema cada vez maior. O termo sempre foi usado para designar a tendência a olhar como problemas médicos e tratar com as ferramentas da medicina, em especial medicamentos, as dificuldades, os desconfortos, os incômodos ou as inadaptações de muita gente. Problemas que não eram considerados doenças ganham, cada vez mais, códigos específicos nos compêndios médicos.

CC: Isso é meramente um problema conceitual?
CM: Ao lado de considerações filosóficas sobre conceitos e parâmetros de normalidade há interesses econômicos que intensificam esses movimentos. A indústria de medicamentos é a maior interessada em identificar novas indicações para seus produtos.

CC: Como os médicos são influenciados?
CM: De diversas formas. Quanto pior a formação, o preparo e as oportunidades de emprego e atualização de um profissional, mais suscetível ele se torna. A indústria de medicamentos destina grandes somas para ganhar a adesão deles. Além de informações e propagandas, médicos recebem outros estímulos, como financiamento de viagens, participação em congressos ou mesmo remuneração direta.

CC: Há exagero ou má intenção proposital na indução de tratamentos com pouco valor agregado e custos elevados?
M: Há intenção de aumentar os lucros. Isso acontece com a ampliação de indicações do uso de drogas e lançamentos de novos produtos que, muitas vezes, não são melhores do que os que já existiam. Há interesse especial em doenças crônicas, que requerem tratamentos pela vida toda. O esforço não se dá apenas junto aos indivíduos. Há outros caminhos, como a pressão para a incorporação de medicamentos pelo governo e o estímulo a ações judiciais para fornecimento de produtos de alto custo. Pode haver boa intenção, mas nem sempre os parâmetros técnicos e éticos são respeitados.

CC: Criamos doenças em situações que eram consideradas normais até poucos anos atrás?
CM: Condições que eram consideradas variações dentro da normalidade têm sido reinterpretadas como doenças que precisam ser tratadas. Esses tratamentos, por vezes, não trazem benefícios reais e criam novas necessidades artificiais. Os exemplos são marcantes na saúde mental, com medicamentos para diminuir a ansiedade em situações em que ela é esperada, tratar qualquer tipo de tristeza como sendo depressão, aumentar a concentração num ambiente cultural que induz à dispersão e melhorar o sono. A mudança nos valores de exames aceitos como normais faz com que um grande número de pessoas passe a ter diagnóstico de pré-diabetes, hipertensão leve, deficiência de vitaminas e minerais, sobrepeso e excesso de colesterol, sem que tais condições representem necessariamente riscos. É comum, nesses casos, a indicação de medicamentos cujos benefícios são duvidosos.

CC: Como esse marketing influencia a demanda exagerada de tratamento com pouca eficácia, e até judicialização?
CM: Uma vez implantada na sociedade a convicção de que tudo deve ser caracterizado como doença e, assim, merecer um tratamento farmacológico, as ­pessoas passam a desejar medidas terapêuticas. Produzem-se artificialmente novas necessidades que são enfrentadas com a compra de remédios ou o pleito para que o Sistema Único de Saúde ou a saúde suplementar os forneça.

CC: Como é o controle dos conflitos de interesse de médicos na prática ­diária no Brasil?
CM: Em grandes instituições públicas e privadas há códigos de conduta que limitam o envolvimento dos profissionais com fornecedores de tecnologias ou os obrigam a declarar seus eventuais conflitos de interesse. Mas isso nem sempre é cumprido. O controle de serviços menores e profissionais autônomos é muito mais difícil.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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