A indescritível alegria de ver filhos de porteiros nas universidades

A pobreza não pode tirar o direito de sonhar. Paulo Guedes também não

(Foto: FÁBIO POZZEBOM/ABR)

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Na tarde de quinta-feira 29, o ministro da Economia, Paulo Guedes, lançou mais uma granada de preconceito de classe durante uma reunião. Ele, que já havia reclamado das “viagens” de trabalhadoras domésticas para a Disney em razão do dólar baixo, resolveu atacar os filhos de porteiros que, por meio do FIES, puderam ingressar e permanecer em faculdades e universidades privadas. Guedes disse ainda que o programa de financiamento estudantil permitiu a “pessoas que não sabem ler ou escrever” a conclusão de cursos de graduação, o que não é verdade, pois uma das prerrogativas para ser beneficiário desse financiamento, a ser pago futuramente pelo próprio aluno, é não ter zerado a redação no Enem, além de apresentar pelo menos 450 como nota média.  

O Fies colaborou para a mercantilização da educação ao priorizar o setor privado, é verdade. Mas foi determinante para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil. O programa criou condições para que  filhos de porteiros, faxineiras, cozinheiras, torneiros mecânicos, pedreiros e demais profissionais que exercem funções consideradas de menor prestígio social conquistassem um diploma, o que era praticamente impossível para as gerações anteriores. 

O Fies, juntamente com o Prouni, com a expansão do ensino superior público e com a política de cotas, faz parte de um conjunto de ações ampliadas e adotadas no país a partir dos anos 2000, com vistas a diminuir a distância que separa ricos e pobres, brancos e negros no Brasil. Partiu-se do entendimento de que a educação é o meio mais seguro de promover a ascensão social e, consequentemente, reduzir as desigualdades.

Tal prerrogativa explica o descontentamento de Paulo Guedes, já que o atual governo tem sido marcado pela política necroliberal, que dentre outras coisas, guia-se pelo corte de recursos e/ou extinção de políticas públicas que buscam a distribuição de renda e a inclusão social. 

Prova disso são as mudanças ocorridas no FIES a partir de 2019. Em uma clara tentativa de barrar a presença de “filhos de porteiros” nas faculdades, o financiamento estudantil, que já beneficiou cerca de 700 mil jovens por ano, atualmente não disponibiliza mais do que 100 mil contratos.  Tudo isso dificulta principalmente o acesso dos mais pobres ao programa, prejudicando a formação de um quadro mais abrangente de profissionais e intelectuais no País.


Vi e ainda vejo o orgulho de pais e mães ao testemunharem o filho ou filha tornar-se o primeiro membro da família a conquistar um título acadêmico

Ao longo da minha carreira como docente, construída sobretudo em regiões marcadas pela pobreza e violência, vi muitos jovens serem vitimados pela exclusão e pela falta de oportunidades. Um deles foi assassinado na porta da escola com três tiros, minutos antes do início das aulas. Mas vi também os impactos positivos do Fies na vida de dezenas de garotos e garotas, a maioria deles oriundos de famílias com pouca escolaridade. Vi e ainda vejo o orgulho de pais e mães ao testemunharem o filho ou filha tornar-se o primeiro membro da família a conquistar um título acadêmico. A alegria de ver filhos de porteiros nas universidades é indescritível.

Dessas lembranças, talvez a do Ronie, meu ex-aluno, seja uma das que mais aquecem o meu coração. Ao ser aprovado no vestibular e no FIES, Ronie ligou para a professora que vos escreve. Quando atendi, perguntou se eu lembrava dele, como se fosse possível esquecê-lo. Contando sobre a novidade, disse: “Professora, já imaginou eu deixar de ser servente de pedreiro e virar engenheiro?”. Como não poderia deixar de ser, fui tomada pela emoção. Olhei para trás, pensei na minha trajetória de educadora em bairros periféricos. As palavras do Ronie me deram a certeza de que não poderia ter feito outra escolha a não ser a docência. Valeu a pena. Foi a glória. 

A fala odiosa de Paulo Guedes ainda traz à minha memória as palavras do Marcelo, de quem fui professora em 2017. Ao ser perguntado sobre o que aprendeu com a história do Fábio Constantino, filho de uma trabalhadora doméstica que foi aprovado em primeiro lugar para o curso de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Marcelo respondeu: “Eu aprendi que a pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar”.

Paulo Guedes também não. 

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